Capítulo 2 – O Espelho da Alma
- Rei Khâr, os primeiros convidados chegaram. – anunciou Yu, o jovem chefe da arqueria real.
- Perfeito Yu, por favor, reúna todos na Sala do Trono, e avise à Ika para servir limonada e biscoitos. – ordenou o rei. Depois ele mesmo puxou o trono mais a frente, unindo-o a mesa principal. Os jovens chegaram ao salão e sentaram-se no chão, próximos a ele. O grande salão estava bem decorado com lanternas e fitas, e a mesa era iluminada por potes de cerâmica com velas aromáticas. Havia também tochas que conferiam ao aposento uma luz avermelhada, tematicamente apropriada. A mesa estava bem iluminada, mas o restante do salão estava escuro.
- É importante que se lembrem de proteger o Rei, se algo der errado. Estamos aqui pela defesa de Yudá. – disse Kataka, alertando seus irmãos em um tom muito sério.
- Não será necessário. É uma reunião de aliados e amigos, não um Concílio de Reis do Palácio Magno... relaxe irmão. – respondeu Kota.
Os dois primeiros convidados a chegar foram o mestre anão Carwin e o duende bardo Pirralho, do Reino vizinho de Armenincus. Carwin era conhecido em várias partes do Reino Magno como o melhor ferreiro armenincano, se não de todo o Primeiro Mundo. Tinha uma longa barba ruiva trançada, princípios de calvície disfarçados por uma pequena trança que se erguia na parte de trás de sua cabeça. Sua armadura grande e robusta era bem trabalhada e muito brilhante e lustrada, provavelmente feita por ele mesmo nas forjas armenincanas. Grossas botas e luvas indicavam seu amor pelo ofício de ferreiro, mas mesmo assim, era um anão muito limpo. Carwin entrou e cumprimentou o Rei Khâr com uma deferência amigável, e um dos jovens logo lhe indicou um lugar à mesa. Trocou meia dúzia de cumprimentos e permaneceu em silêncio, desfrutando dos biscoitos e da limonada trazidos por Shoshone. Pirralho era muito pequeno, aproximadamente uns trinta centímetros de altura. Tinha um cabelo loiro esverdeado, e usava uma elegante roupa de menestrel. Trazia uma miscelânea de instrumentos minúsculos: uma flauta, um alaúde, um violino. Claro, Carwin era quem carregava toda a tranqueira, e o risonho e hiperativo duende não parava de fazer comentários sobre tudo o que lhe chamava a atenção. Quando Carwin se sentou, Pirralho sentou-se ao seu lado, e começou a contar histórias que já ouvira sobre Yudá. O Rei Khâr foi gentil: silenciosamente, fez-se de interessado.
Após a dupla armenincana, entraram mais dois convidados. O primeiro deles foi o aristocrata khortiano Sebastian Barka. Rico nobre do Reino de Khort, suas vestes com panos nobres e joias indicavam o tamanho de sua riqueza: era um dos homens mais populares e ricos de Khoreakhort, com amigos entre os monarcas e os ladrões. Conversando animadamente com Sebastian, estava a linda Capitã Carmelitta de Laquilla. Vestida com um elegante casaco azul com detalhes dourados, ela era a capitã pirata mais famosa e admirada do Primeiro Mundo. Comandava o Cisne Dourado desde que era adolescente. Carmelitta era uma amiga antiga do Rei Khâr já de outras aventuras, e já estivera várias vezes nos portos Yudanos. Seu cabelo loiro e seus olhos azuis encantavam vários homens e mulheres pelo mundo, o que deu origem a uma lenda que dizia que ela era descendente de ninfas, fadas ou até mesmo sereias.
Sebastian e Carmelitta cumprimentaram afetuosamente Khâr, dando-lhe um abraço e conversando sobre velhos amigos, como Maífela, a Rainha Fada da Floresta de Lvthar. Falaram também sobre o antigo rei yudano Kogarashi, que fora apaixonado por Carmelitta mas nunca conseguiu consumar seu amor. Após algumas risadas e bochechas rosadas, os três se sentaram e continuaram a trocar comentários e lembranças.
Em seguida, chegou o General Khan, irmão do Rei Khâr e esposo de Baa-chan. Um homem maduro, com uma armadura com peças vermelhas, e um elmo de estilo samurai. Carregava várias espadas, que teve a gentileza de deixar próximas à porta, e não levar à mesa. Sua longa barba preta não conseguia esconder seu sorriso: era um homem que passara por muitas batalhas, mas preservara o bom humor – um feito raríssimo e que lhe atribuía muito carisma.
Khan abriu a porta para dar passagem a outro convidado, um monge do Monastério dos Dragões, Kataranagi Rukarin. No passado, ele fora um fazendeiro do Condado de Villas, e agora buscava no Monastério dos Dragões Orientais um objetivo maior de sua existência. Atendendo às ordens do Mestre Okinagawa, veio à Pagoda das Almas participar do jantar promovido pelo rei. Usava a tradicional roupa laranja, embora seu cabelo preto e curto ainda contornasse sua cabeça, ao contrário da careca típica dos habitantes de monastérios. Trazia como única arma um bastão, e um bolsa onde provavelmente estavam poucos suprimentos. Silencioso e muito comedido, ele cumprimentou o Rei e os presentes com certo distanciamento, e então se sentou com as pernas na posição de lótus, aguardando os demais convidados. Khan cumprimentou o irmão, e sentou-se no lado oposto da mesa.
Petiscos foram trazidos à mesa por Ika, que cumprimentou sorridentemente os presentes e distribuiu limonada entre os copos. O cheiro de massa cozida e bem temperada adentrou o salão, e ouviu-se o estômago de Kataka roncando bem alto. Todos os yudanos e Pirralho riram. Carwin manteve sua cara séria, mas seus olhos corriam na direção da cozinha. Sebastian e Carmelitta continuavam a conversar com o rei, e não perceberam a cena.
A porta do salão se abriu mais uma vez, e entrou um senhor de longa barba branca e roupas simples. Amadeus County, um homem idoso, era um famoso comerciante extremamente rico e persuasivo, que conseguiu lucrar com as guerras e se tornar um importante aliado em missões distantes. Ele cumprimentou os presentes e se surpreendeu com a presença de Carmelitta, sentando-se próximo a ela para ouvir suas histórias de além mar.
Após algum tempo de conversação, todos já pareciam à vontade o suficiente para anunciar que suas barrigas estavam roncando. Shoshone e Baa-chan vieram da cozinha e preencheram a mesa com várias panelas bem decoradas de macarronada. Havia macarrão com legumes, macarrão com carne branca, macarrão com peixe, diversos tipos de fios de macarrão, saladas, e jarras com as mais diversas bebidas, de vinho até limonada. Pirralho pulou junto à panela na qual pedaços de bacon brilhavam junto à macarronada, mas foi impedido por Carwin.
- Pirralho, espere. – Disse Khâr, severamente, seguido de um leve sorriso – Em Yudá esperamos todos estarem à mesa para iniciarmos a refeição. A senhora Shoshone e a senhora Baa-chan já estão chegando para sentar-se conosco. Com a mesa completa, as duas mulheres sentaram-se entre o general Khân e o monge Kataranagi.
- Bem, vamos começar nos apresentando, afinal de contas eu conheço todos, mas nem todos se conhecem. Pode começar Carmelitta? – pediu o rei.
- Claro, majestade! – A mulher sorriu e se pos em pé. – Sou Carmelitta de Laquilla, Capitã do Cisne Dourado, membro da Confraria Real do Palácio Magno, e segunda no comando do trono da Costa Dourada. Vim a pedido da rainha Pirata, Genevieve de Bellaqua, e em consideração a amizade que tenho com o povo yudano, que sempre me recebeu tão bem. É isso. – a pirata sentou-se e sorriu para todos como quem conclui um discurso.
- Minha vez – Disse Sebastian – Sou Sebastian Barka, Conde do Reino de Khort, da cidade de Minidae, mas moro na capital, Khoreakhort. Há muito tive aventuras com os yudanos, e tenho grande desejo em selar a Cavaleira Descartia para sempre. Ela é uma besta fera que precisa ser contida, ou poderá levar milhares à morte, mais uma vez. Minha espada e meu ouro estão à disposição da missão, bem como meus homens, um grupo de famosos ladinos de Khort. Fico grato pela hospitalidade, Rei Khâr.
- Sua presença aqui é muito bem vinda. Sua vez County – disse o rei com um sorriso simpático no rosto.
- Amadeus County. Comerciante, fornecedor, informante. Minha lealdade é para com o Reino de Yudá. Todo o resto é especulação de quem não gosta de mim. – disse de forma concisa o idoso, sem parecer muito simpático.
- Obrigado County. Pontual como sempre. - os olhos do rei miraram o seu irmão, exatamente oposto a ele na grande mesa de jantar. Ele apenas acenou com a cabeça, e o general começou:
- Sou Eatnam Khân. General de Yudá. Veterano da Guerra Nova e da Guerra contra os Cavaleiros das Trevas. Um dos trinta arqueiros da batalha de Akayu. Sirvo a Pagoda das Almas, e a casa do Rei Khâr. – Disse o homem, em tom sereno.
Ele então olhou para o lado e sorriu. Era a vez de sua esposa falar, a agradável Baa-chan.
- Sou Baa-chan, dona do restaurante ali da frente. Eu e a Shoshone fizemos o jantar. – disse ela sorrindo e apontando para as comidas sobre a mesa. – Vou ser breve para a comida não esfriar hahaha!
Os presentes na mesa sorriram com a gargalhada da senhora, e logo Shoshone a interrompeu:
-Tá bem, tá bem, engraçadona. É minha vez e eu sou Shoshone. Governante da Pagoda das Almas e conselheira pessoal do Rei Khâr. Também sou a responsável por educar esses pestinhas aqui – disse ela apontando para os jovens à mesa. – Kataka, o soldadinho de cabeça quente; Kota, a cópia do mais velho; Shisui, a médica convencida; Katura, a sorridente tola e Shosho, o porquinho no corpo de uma criança. – concluiu.
Foi inevitável que todos rissem quando Shoshone terminou de falar. Mesmo os jovens, um pouco envergonhados, chegaram abrir sorrisos amarelos. O rei Khâr então pediu para que o monge começasse a falar.
- Sou Kataranagi Rukarin. Sou nascido em Villas, me mudei para o monastério há pouco tempo. Vim para provar meu valor para o mestre Okinagawa, e proteger minha nova casa da ameaça dos Cavaleiros das Trevas. – disse de forma muito séria Kataranagi, que parecia estar ansioso para que a missão fosse logo anunciada.
- Obrigado Kataranagi. Seja bem vindo à Pagoda das Almas, caso nunca tenha estado aqui. Senhor Carwin, por favor.
- Sou Carwin – disse o anão, levantando-se. – Sou conhecido como um dos melhores ferreiros de Armenincus, quiçá, de todo o Primeiro Mundo. Fui enviado pelo rei Constanzzo para ajudar na missão, já que minhas habilidades serão essenciais. Sou forte, e hábil no uso de várias armas. Ah, e esse aqui é o Pirralho. – disse Carwin apontando para o duende que escalava a mesa dando pequenos pulos.
- SIIIIIIM, SOU EEEEU! – gritou Pirralho – O bardo mais espetacular e animado que vocês terão o prazer de ver em suas vidas. O que é isso? O pedido de uma canção? Ah! Sabiam que a música é uma das formas mais poderosas de magia? É por isso que na apresentação de hoje, eu preparei um repertório cheio de...
- Chega Pirralho. É para se apresentar no sentido de conhecer, não no sentido artístico. – interrompeu Carwin. As orelhas do duende murcharam, e ele desceu da mesa, visivelmente frustrado.
Como agora eram os jovens que estavam sentados próximos ao Rei, a jovem Shisui dispensou apresentações:
- Acho que a senhora Shoshone já nos introduziu, somos os irmãos pupilos do antigo Rei Koga, adotados por ele antes de sua morte. Estamos aprendendo com o Rei Khâr e a corte como lidar com a rotina da vida no Palácio em benefício do reino de Yudá. – explicou a adolescente.
- São como filhos para mim e para todos do reino – disse o rei, sorrindo. – Tenho certeza que Shoshone só quer o melhor para vocês. Muito bem, feitas as apresentações, vamos começar a reunião. – Khâr tomou um novo fôlego e houve uma mudança no seu tom de voz.
- É certamente sabido por vocês, que a Cavaleira Descartia assola os reinos do Planeta Kereato. Ela é literalmente, a Cavaleira da Catástrofe: sua função na Cavalaria é a destruição em massa, que ceifa milhares de vidas e destrói bens materiais, cultura, conhecimento e atrasa ainda mais o desenvolvimento da humanidade. Todos aqui já ouviram falar de pelo menos um de seus ataques, tragédias descomunais, que levaram amigos, conhecidos ou até mesmo, nossos ancestrais. – disse o rei, olhando para todos como um professor olha para seus alunos. A porta da Pagoda se abriu, quando ele estava prestes a continuar. Uma silhueta feminina entrou, fechando a porta com certa pressa.
- Me desculpe, eu ainda não estou acostumada em correr! – disse a mulher jovem de cabelos castanhos que entrou no salão.
- Alto lá! Essa é uma reunião privada, quem é você? – Disse o espadachim Kataka, levantando-se e colocando a mão no gume de sua espada, sem desembainhá-la.
- Calma gente, sou Liandre, Liandre Sirenya, do Mar do Lótus de Jade. Fui enviada pelos sereianos e pelos Guardiões para ajudar na missão. Recebemos o chamado do Rei Khâr e agora estou aqui. Sou uma sereia! – disse Liandre, abrindo os braços de força expositiva, com um sorriso aberto no rosto. Seus olhos verdes expressavam grande alegria, sua roupa era um vestido esverdeado, como que feito com algas grossas do fundo do mar, e de fato, ela exalava um odor salgado.
Os convidados discutiam entre si:
-Para começo de conversa, ela pode nos encantar com sua voz e matar a todos nós – resmungou Carwin. – Não faz absolutamente sentido nenhum ela ir conosco. E segundamente, ela tem duas pernas, e está andando bem longe da água. Grande sereia você me parece hein? – Disse o anão, encarando a sereiana, desconfiado.
- Sou uma poderosa arcana do elemento água. – explicou Liandre. Posso usar a água para atacar, para defender, e também para curar. Vão precisar de alguém que tenha mais poderes do que um escudo e espada. E como não estou vendo nenhum outro ser capaz de dominar magia elemental arcana, vão precisar de mim. – Liandre parecia convencida de que estava certa, e sorriu, ao perceber o rei Khâr pensativo.
- Podemos usar uma poção da Verdeira Face – sugeriu Shisui. – Ela funciona como uma poção da verdade, e vai fazer ela retornar à forma original, com guelras e escamas. Se ela for uma doppelganger... bem... ela pode morrer envenenada pela poção – sorriu a jovem, tentando minimizar o terrível efeito colateral.
- Eu não vou beber nada disso – impôs-se a sereia. - Como vocês querem convocar aliados para uma missão se sequer confiam uns nos outros? Eu fui enviada pelos Guardiões e pelo povo do mar, e não vim à superfície para receber insultos. – disparou Liandre, visivelmente descontente.
- Não será necessário usarmos uma estratégia tão agressiva, Shisui – explicou Khâr – Além disso, não sabemos os efeitos desse tipo de poção nos seres das águas. Se ela revertesse sua forma, poderia fazer mal à sua própria saúde. – diante do argumento do rei, todos pareceram acalmar-se. Mas ele sabia que ainda era preciso conquistar a confiança dos convidados. – Tenho uma proposta melhor. Shoshone minha cara, poderia me trazer o Espelho da Alma?
- Claro, majestade, me dê alguns minutos. – a governanta levantou e sumiu nas sombras do salão.
- Esse espelho era uma relíquia mágica do nosso reino! – exclamou Pirralho, em tom questionador.
- O item foi dado pelo seu rei como um presente ao nosso antigo pai, o Rei Kogarashi. – disse a jovem Katura. – nada foi roubado nem tomado. Foi nos dado de bom grado em virtude da amizade dos reis.
- Que seja! – resmungou Carwin - O lendário espelho que revela a aparência da alma daquele que o observa... Como isso vai ajudar majestade, para descobrirmos sua verdadeira forma? - perguntou o anão.
- Basicamente, o Espelho revela a essência daquele que o observa. As consequências são imprevisíveis. Mas, se Liandre for mesmo uma aliada enviada pelos Guardiões, o Espelho não nos mostrará nada que não possamos ver. O caráter dela, refletido, é mais importante que sua espécie, não concorda? – disse Khâr.
Carwin resmungou algo indistinguível. Pirralho amarrou a cara, e começou a cortar o macarrão de forma ligeiramente agressiva.
- Eu concordo com o Rei. Todo e qualquer aliado será essencial nessa tarefa. Toda a ajuda será pouca, se quisermos realmente cumprir esta missão. – disse Sebastian.
- Exatamente. Não temos muitos amigos com quem contar agora, nem muitos recursos. Selar uma Cavaleira é uma tarefa épica, acontece poucas vezes em milênios. E, até onde eu sei, ninguém nunca efetivamente selou a Descartia, o que torna tudo ainda mais difícil. – complementou a capitã Carmelitta.
- Muito bem, aqui está majestade – Shoshone retornou com o Espelho da Alma em mãos. O artefato tinha um formato retangular de aproximadamente cinquenta centímetros de cumprimento e trinta de largura. Tinha uma moldura feita com um tipo de prata esverdeada, que alguns poderiam dizer ser a gema esmeralda. Formas em estilo rococó adornavam suas margens, e o vidro parecia muito escuro, como se absorvesse mais luz do que refletisse. O rei Khâr pegou o objeto em mãos e pediu para que a sereia se aproximasse.
- Vou virar o espelho para Liandre, e vocês poderão ver seu reflexo. Peço que não fiquem exatamente atrás dela, e sim em um ângulo em que não se vejam no espelho, para não ativar seus efeitos em vocês também. – explicou.
Houve alguns ruídos e dois grupos surgiram nos dois lados da mesa, todos espiando o espelho que estava na mão do Rei. Liandre foi até o trono, e parou exatamente em frente a Khâr. Ele virou o espelho para ela, aproximando-o diretamente de sua face. A sereia sorriu.
O que todos os convidados puderam ver no espelho era o rosto de uma sereia extremamente bela, que sem dúvida era a própria Liandre, só que no fundo do mar. Seus ombros tinham pequenas barbatanas e as orelhas cresciam de forma pontuda, como as de elfos. Seus olhos brilhavam ainda mais, e vários peixes apareciam em seu redor. Seus cabelos flutuavam dentro da maré, movimentando-se como se tivesse vida própria.
- Bem, não me parece nada demais – disse County. – Acho que ela é uma aliada sim. Eu saberia se fosse uma espiã. Pode confiar majestade. – recomendou o burguês.
- Ela não me parece hostil – comentou Baa-chan de forma furtiva para Khân – mas me parece meio atrapalhada... não seria o caso de salvar a vida dela, evitando expô-la ao perigo dessa missão?
- Acho que ela está convencida. Olhe todo o alvoroço que ela fez. Ao menos é destemida. – respondeu Khân.
Após alguns comentários e alguns minutos de discussão, decidiram que Liandre era uma aliada, e poderia se juntar a reunião, que finalmente poderia continuar.
- Bem, o selamento de Descartia – continuou o rei. – Como eu dizia antes da chegada da nossa nova aliada, nós precisamos reunir informações e encontrar um jeito de selá-la... permanentemente.
- Onde ela foi avistada pela última vez? – perguntou o general Khân.
- Se me lembro bem, há dezesseis anos ela atacou Armeninka – disse Carwin.
- Há sete anos ela apareceu nas Fazendas La Villaça, perto da Costa Dourada, e matou aquela que veio a se tornar a Guardiã Ada. – comentou Carmelitta.
- Há seis anos ela esteve em Yudá, no Vulcão Ikaris Dokã – comentou Kataranagi.
- Há cinco anos ela esteve em Oblivice – disse Sebastian, com um olhar vazio para o centro da mesa. Todos olharam para ele intrigados. Ninguém nunca ouvira falar de nenhum lugar chamado Oblivice.
- Oblivice? Nunca ouvi falar, é algum tipo de caverna mágica de gelo? – perguntou Pirralho.
- Não. É um reino nórdico, no extremo norte, isolado pelas montanhas Azuis onde ninguém consegue chegar. Ela matou quase todos. Sabe-se que a cidade real foi quase arruinada, e o príncipe noivo morreu. – disse Sebastian.
- Nunca ouvi falar desse lugar. É para além de Rivolid? – perguntou Carmelitta.
- Deve ser muito frio, se é tão ao norte. – disse Kataranagi.
- Sim, é num lugar tão longe e tão distante que só é possível chegar lá por um portal mágico. Um Sino, se é que me entendem. Mas não importa. O que importa é se alguém ouviu falar dela depois disso. Alguém ouviu alguma história? – disse o nobre percorrendo seu olhar pelos convidados.
- Não ouvi nada sobre, nem no Reino Magno ou qualquer reino do Primeiro Mundo. No Segundo Mundo, ouvi apenas sobre a Guerra de Rivolid e Temperance. E no Terceiro Mundo, no Império Andoriano, ouvi boatos sobre dragões. Mas nada sobre catástrofes da Cavaleira dos Desastres. Faz um tempo que ela não surge nos mundos que conhecemos – contou a capitã Carmelitta.
- Bem, então vamos até Oblivice – disse Carwin – lá encontraremos rastros sobre a passagem dela. E quem sabe vamos descobrir onde ela está, ou onde ela se esconde quando está sem energia mágica. – comentou o ferreiro.
- Quando está selada, Descartia fica em sua própria dimensão. É um lugar como o espaço sideral, cheio de estrelas, nebulosas... um tipo estranho de vácuo, onde sua voz ecoa mesmo na ausência de qualquer outra coisa física. Ela fica lá, sendo alimentada pelos seus décars, até ter força o suficiente para rasgar uma fenda dimensional e voltar para atacar nosso mundo. Esse movimento ela faz e refaz através dos milênios, indo e voltando, devorando as almas levadas pelos décars para acumular energia. – descreveu Sebastian. Quando terminou, Baa-chan olhou para ele impressionada, e disse:
- Como você descobriu isso? É uma informação que nunca ouvimos de ninguém, nem mesmo dos Guardiões pessoalmente. – contestou a cozinheira, terminando de servir seu prato.
- Pesquisa. Muita pesquisa. Financiei um grupo de magos em Apotekaquil para descobrir mais sobre a história dela. E eles me trouxeram estas informações há algumas semanas. – respondeu Barka. – Além disso, há também outra informação importante sobre a história da Cavaleira: ela é nativa do Império Andoriano, quando ainda existia a República de Androsphera.
- Já ouvi falar desse lugar. Dizem que não existe mais. Foi destruído há três mil anos. – comentou Kataranagi.
- Sim. Eu já estive nas ruínas, com a Guardiã Ada e outros guerreiros. É uma floresta, não resta mais nada da civilização que ali um dia viveu. O lugar fica na fronteira entre o Segundo e o Terceiro Mundo. – disse o rei Khâr. – As ruínas de Androsphera são um domínio dos Guardiões. Não faria sentido ter um portal dimensional da Cavaleira lá.
- Então onde, onde nos Dezesseis Mundos poderia estar esta porta? – questionou Carwin.
- No Reino dos Cavaleiros? Na Fortaleza das Trevas? Para mim faz todo o sentido que esteja em um lugar dominado pela Cavalaria. – disse o general Khân.
O silêncio permaneceu por alguns segundos. Todos estavam pensativos, recorrendo suas lembranças entre cantigas e conversas de taverna, sobre possíveis lugares que poderiam guardar o acesso à Descartia.
- Há um teatro mágico no Terceiro Mundo! – exclamou Pirralho.
Todos os presentes se surpreenderam com a alegação animada do duende. Alguns reviraram os olhos, e voltaram-se para seus pensamentos. Carmelitta, Khar e Carwin continuaram ouvindo. Pirralho pegou um pequeno violão e começou a dedilhar uma canção:
Quando ver o brilho na clareira
E o céu começar a chorar
O Teatro da Lua está perto
Corra para não se afogar
A praga do Rio lhe devora
A lama do pântano mata
O teatro é palco da morte
E a viagem para lá é desgraça
Quando Pirralho conclui, fez uma pequena deferência, Katura, Shosho e Baa-chan lhe aplaudiram.
- É isso! Lembro dessa história! – disse Carmelitta. – O Teatro da Lua Cheia, uma ruína proibida do Terceiro Mundo. Dizem que está completamente inundado pelas águas do Rio Wellisart, e nestas águas habita a praga do Rio, uma doença de parasitas carnívoros que mata em minutos! Ninguém nunca vai ao Teatro, porque dizem que está repleto de cadáveres e demônios. Mas, quando é noite de lua cheia, a rocha branca que compõe a construção brilha com uma luz branca de brilho peroláceo, e pode ser avistado a quilômetros de distância! – contou empolgada a capitã, que parecia ter encontrado um baú de ouro pela alegria em seu rosto.
- Também já ouvi falar do Teatro da Lua Cheia. Uma construção amaldiçoada. Feita completamente em pedra branca, que nunca se corroi nem se desfaz. Um minério antigo que não se encontra mais em lugar nenhum. Mercenários já tentaram assaltar o lugar, mas ninguém volta. Nem mesmo o imperador tenta entrar no lugar, que está repleto de corpos. Três mil anos de invasores mortos se acumulam nesse lugar. – contou Amadeus County.
- Bem, parece um lugar bem interessante para esconder uma fenda dimensional – disse Kataranagi. – Além de tudo, lendas alimentam lendas. Eu nunca ouvi falar desse lugar, mas se ela é uma cantora, faz sentido que esteja em um teatro. – disse o monge, olhando para o rei e depois para os outros. – Acho que é um bom começo.
Sebastian, que estava quieto observando a todos, todo esse tempo, se pronunciou.
- Estou surpreso, acertaram em cheio.
- Como você pode saber disso Sebastian? E por que não disse antes? – questionou County.
- Bem, quem é a Guardiã que se opõe a Descartia? – perguntou o nobre.
Khâr olhou para seu peito, onde um enorme amuleto no formato de um Sol estava repousado. Foi um presente que recebera direto da Guardiã da Sabedoria, há muitos anos. O Colar do Sol lhe foi dado para salvar sua vida e lhe conceder sabedoria, e várias vezes essa entidade ajudara os yudanos em batalha. Era uma guardiã, mas era também uma amiga antiga.
- A Maga Linda Lace, Guardiã da Sabedoria. – disse o rei.
- Exato – concordou Sebastian – e embora não saibamos nada sobre a Cavaleira, sabemos sobre a Guardiã. Agora pasmem; foi o pai de Maga Linda que construiu o Teatro Lua Cheia, o engenheiro androspherico Alastor Lace, no ano dois mil duzendo em cinquenta e nove. O teatro funcionou bem até o início de uma guerra, a guerra que destruiu Androsphera. Essa guerra começou em uma noite específica, quando vários nobres se reuniram em um lugar, em uma grande festa para comemorar os avanços científicos da República.
- Um teatro. – comentou o general Khân.
- Isso, um teatro. Nessa mesma noite, todos os nobres morreram, e a Guardiã Maga Linda foi elevada. Ela foi a única sobrevivente. Agora, sabemos, pela Lenda Prima, que se acontece a elevação de um guardião...
- Acontece a condecoração de um Cavaleiro. – completou Liandre.
- Então é isso. Tenho motivos concretos para crer que as ruínas do Teatro Lua Cheia guardam o refúgio de Descartia. É para lá que temos que ir, e confrontá-la de uma vez por todas. Não basta fechar a fenda, porque ela pode abrir outras. Mas podemos entrar pela fenda, e capturá-la, ou quem sabe, selá-la dentro de seu próprio selamento. – Sebastian parecia empolgado, e completamente disposto.
O Rei Khâr e todos os outros estavam em silêncio. Analisavam as informações e as possibilidades. Pensaram em silêncio por alguns minutos, até que Carwin quebrou o clima pesado.
- Bem, ou nós vamos até ela ou ela vem até nós. Eu vou. – disse o anão, cruzando os braços e encarando os outros convidados.
- Eu vou, em nome de Yudá – disse Kataranagi. – Quero provar meu valor e ganhar a confiança do mestre Okinagawa. Essa será uma prova da minha lealdade, e um verdadeiro teste de minhas capacidades.
- Contem comigo – falou Liandre – foi para isso que vim até aqui, para ajudar vocês nessa missão. E ficarei feliz em finalmente mostrar do que sou capaz. – disse a sereia, sorrindo.
- É uma missão muito sensível, acho que primeiro deveriam explorar, e depois devemos agir. Primeiro recolham informação, e depois decidimos o que fazer. Pode ser que ela nem esteja lá, então esta primeira fase deve ser apenas exploratória, entenderam? – indagou o General Khân.
- Eu também irei – disse Sebastian. – Meus recursos e minha força estão à disposição. Vamos acabar com ela de uma vez por todas, e findar esse sofrimento que acomete a humanidade neste planeta.
- Bem eu não vou, sou mãe solteira com uma filha para criar - Disse Carmelitta – mas posso levá-los até lá, no meu barco. Leva uma dezena de dias pelo menos, até chegarmos ao Porto Croft, nos limites do Segundo Mundo. Lá, o nobre Joshua Croft, um grande amigo de Yudá e dos Piratas do Primeiro Mundo, vai nos ajudar. O porto de entrada em Temperance fica em suas terras.
- Tenho certeza que o Croft vai ajudá-los, especialmente indicando os caminhos entre o Segundo e o Terceiro Mundo, até o Teatro. – comentou o rei.
- Vamos precisar de algum mapa das instalações, deve existir uma planta ou mapa dessa construção. – disse Carwin – Não podemos só entrar nas ruínas e esperar pela sorte. Nenhum anão entra abaixo do solo sem estar preparado.
- Até onde pesquisamos, não existe – respondeu Sebastian – Mas não é nada que não possamos procurar nas bibliotecas do Terceiro Mundo, do Império Andoriano. Além disso, podemos investigar sobre fenômenos estranhos naquela região, e possíveis aparições dela no oriente.
- Não quero bancar o ganancioso, mas quem vai pagar por tudo isso? Quero dizer... o grupo precisará de suprimentos, armas, poções, montarias, hospedagens... por mais benevolentes que queiramos ser, sabemos que isso terá custo. – pontuou Amadeus County.
- Eu pago. Dinheiro não vai ser o problema. – Respondeu Sebastian. – Meus ladinos vão fazer nossa guarda também.
County ergueu uma das sobrancelhas encarando o nobre khortiano. Carmelitta deu um sorriso contente e disse:
- Bem, já que teremos tão generoso mecenas, vou preparar meu barco para partirmos amanhã. Por sorte imaginei que vocês me chamariam para uma grande viagem, e já viemos no Cisne Dourado preparados com material de navegação para três meses. – comentou a Pirata. – Todos de acordo?
Liandre, Carwin, Pirralho, Kataranagi e Sebastian assentiram com a cabeça. O Rei Khâr então anunciou:
- Muito bem. Khân converse com o grupo e providencie o armamento necessário. County nos traga poções de cura de nível um e de nível três. Baa-chan e Shoshone preparem suprimentos para a viagem, comidas não perecíveis e pães. Carmelitta, fique a vontade para solicitar material no Porto Zangmor, enviarei mensagem para o estaleiro explicando a situação. Sebastian – disse o rei olhando para o nobre – Espero que tenha trazido os recursos com você.
- Estão por aqui. Os Escorpiões do Deserto fazem minha segurança desde que saí de Khort, e guardam meu ouro. Quando for solicitado, eu lhes trarei a quantia necessária. – respondeu Barka.
- Pois bem. Shoshone, por favor, guarde o Espelho no cofre real. Agora vamos terminar de jantar e tratar de ter uma boa noite de sono. Amanhã o dia será movimentado, e vocês precisam estar firmes e fortes para a aventura. – ordenou o rei.
- E nós, nós fazemos o quê? – disse Kota. – Queremos ajudar em algo!
- Comece terminando de rapar essa tigela garoto! Não quero um fio de macarrão nesse prato! E essa louça vai precisar ser lavada, vocês seis podem ir preparando os músculos. – falou Shoshone, em tom sarcástico.
- Algumas vezes o silêncio é a melhor opção, tolo. – comentou Shisui, visivelmente aborrecida.
Quando ver o brilho na clareiraE o céu começar a chorarO Teatro da Lua está pertoCorra para não se afogarA praga do Rio lhe devoraA lama do pântano mataO teatro é palco da morteE a viagem para lá é desgraça
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