Lindaura e o Velho Rei Prose in Storevender | World Anvil
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Lindaura e o Velho Rei

Há muito, muito tempo, vivia um velho rei, que era um tanto peculiar; e ele se tornou assim, dizia-se, por ter tido muitos desgostos, o coitado do velho rei. Tanto seu filho quanto a rainha haviam morrido, e alguém rasgara seu coração, de modo que ele afirmava também estar às vias de morrer. Mas quem tinha sido, e como aconteceu, ele jamais contava. Era alguém que tinha garras, era só o que dizia e, depois disso, ele passou a pensar que todas as pessoas tinham garras.   Ninguém podia chegar perto dele mais que duas braças de distância. Os criados não podiam jamais tocá-lo. O mordomo-mor devia servir a comida no canto mais distante da mesa, e o rei não apertou a mão de ninguém por muitos e muitos anos. Se por acaso alguém se esquecesse das duas braças de distância, e se aproximasse mais um dedinho, tinha que ficar uma semana no calabouço para refrescar a memória.   Mas, tirando isso, ele era um rei magnífico. Ele governava sua terra bem e com justiça. Todas as pessoas o tinham em boa conta, e a única coisa que lamentavam era que ele não queria arranjar uma nova rainha e nem prover um príncipe ou princesa para herdar o reino. Quando lhe perguntavam sobre isso, ele sempre respondia:   — Me mostre alguém que não tenha garras, que eu deixo sentar no meu trono.   Mas jamais aparecia alguém em quem ele não encontrasse garras. Podiam estar debaixo das unhas, podiam estar encolhidas entre as mãos, mas sempre lá se estavam.   Então, um dia, o velho rei saiu andando sozinho pela floresta. E, quando cansou, ele se sentou sobre o musgo suave, enquanto escutava os gorjeios dos passarinhos.   De repente, veio uma menininha com cabelo esvoaçante, correndo pelo caminho.   — Socorro, socorro, ele quer me devorar! – gritou ela, e pulou no colo do rei.   E, quando ele ergueu os olhos, viu entre as árvores uma besta cinzenta, peluda, com olhos luzindo, a bocarra vermelha e arreganhada. Era o lobo, que justo então tinha pensado em engolir a menininha como café da manhã. Mas ele ficou com medo da imponência do velho rei, que se levantou e desembainhou seu sabre brilhante, e num instante o lobo deu meia volta e correu para dentro da floresta. Quando o lobo se foi, a menininha permaneceu onde estava, chorando, o corpo todo tremendo.   — Agora você tem que me levar para casa também –, disse ela — porque senão ele vem de novo atrás de mim.   — Eu devo? – perguntou o rei. Ele não estava acostumado a ser comandado daquele jeito.   — Sim, mas você vai ganhar um pãozinho branco da minha mãe pelo incômodo. Eu me chamo Lindaura6, e meu pai é moleiro na montanha, aqui, bem detrás da floresta.   Ela tinha razão. O rei realmente não podia deixá-la à mercê do lobo, e assim ele se comprometeu a levá-la.   — Vai na frente que eu te sigo – disse ele.   Mas Lindaura não ousava andar sozinha.   — Não posso segurar sua mão? – perguntou ela, esgueirando-se perto dele.   O rei teve um sobressalto e olhou a mãozinha estendida.   — Não, você deve ser cheia de garras, mesmo pequena assim – disse ele.   Então Lindaura encheu os olhos de lágrimas e escondeu as mãos atrás das costas.   — Você fala igualzinho meu pai – disse ela —, só porque a gente esquece de cortar as unhas.   Lindaura se envergonhou e olhou para o chão. Mas, então, ela pediu para ao menos poder segurar no manto dele – e foi atendida. Ele não soube como pedir para que ela mantivesse a distância de duas braças, já que ela era uma criancinha que não compreendia nada.   E lá foi ela pulando ao seu lado, contando da sua casa e de seus brinquedos. Ela tinha tanta coisa bonita para mostrar a ele; uma vaca, feita de pinha e com palitos servindo de pernas; um barco, que foi feito com uma tamanca quebrada e com vela de papel adesivo; e o melhor de tudo, uma boneca, que mamãe costurou com sua velha roupa de baixo e encheu de estopa. Era tão linda. Tinha uma camiseta vermelha como saia, uma meia azul sobre o colo como xale, e seu irmão mais velho tinha desenhado o rosto com um pedaço de carvão e afixado um nariz com um pedaço de couro.   Era realmente impressionante o que o velho rei tinha de paciência, que conseguisse ir escutando e sorrindo de toda a tagarelice da menina. Embora ele soubesse que aquelas mãozinhas tinham garras, ele a deixava sacudir e puxar seu manto o quanto quisesse. Mas, quando chegaram à estrada e puderam avistar o moinho logo adiante, ele deu adeus para Lindaura. A partir dali, ela poderia ir para casa sozinha. Contudo, uma despedida tão tímida assim não estava nos planos de Lindaura. Ela se pendurou em seu braço, rogou e puxou.   Como podia ser que ele não quisesse comer pão branco, que era tão gostoso? Como podia ser sério que ele não quisesse ver seus lindos brinquedos? Ele poderia brincar com a boneca a noite toda, se pelo menos entrasse um pouco; poderia até mesmo ter o barquinho de presente, já que a tinha salvado do lobo.   Mas, quando nada funcionou, ela o perguntou onde morava:   — No castelo – disse o rei.   — Como você se chama então?   — Velho da Barba Grisalha7.   — Tudo bem, então logo eu vou te visitar, Velho da Barba Grisalha.   E ela tirou seu lencinho com quadrados azuis e ficou acenando na estrada, pelo tempo que o rei ainda pudesse vê-la, e ele se virou várias vezes, porque a achou a menininha mais bonita que vira desde não sabia quando.   Nem mesmo depois que ele voltou para casa podia deixar de pensar em Lindaura, perguntando-se se ela realmente viria visitá-lo. Ele tinha bastante medo de suas mãozinhas, que não queriam manter a distância apropriada, mas isso não evitava que ele sentisse saudades.   Na manhã seguinte, ele concluiu que Lindaura não ousaria fazer o longo caminho por medo do lobo, e foi quando escutou uma aguda voz de criança chamar e chamar debaixo no pátio. E, quando ele saiu no balcão, viu Lindaura, com uma boneca de trapo debaixo do braço, argumentando com o sentinela.   Ela queria falar com o Velho da Barba Grisalha, dizia ela, e era uma visita muito importante.   O sentinela, contudo, ria dela e afirmava que não existia nenhum Velho da Barba Grisalha.   Então ela ficou com raiva. Ele não deveria dizer isso, disse a menina, pois ela sabia muito bem que o Velho da Barba Grisalha morava ali. Ele próprio dissera a ela. E, assim, foi até uma camareira que estava de saída, e pediu por informações. Não, ela também nunca ouvira falar de um Velho da Barba Grisalha, e também se colocou a rir.   Mas Lindaura não se deu por vencida. Ela perguntou ao cozinheiro, ao mordomo, ao valete, à copeira e a todos cortesãos que saíam no jardim para vê-la. E ela ficou com o rosto vermelho quando todos riram dela. Seu lábio inferior começou a tremer, e as lágrimas brilhavam nos olhos, mas, mesmo assim, ela dizia com convicção, com sua vozinha aguda:   — Ele está aqui, porque ele próprio me disse!   Então, o rei gritou do balcão:   — Sim, eu estou aqui, Lindaura.   Lindaura ergueu os olhos, gritou de satisfação e pulou na ponta dos pés.   — Estão vendo? Estão vendo? – perguntou ela. — Eu disse que ele estaria aqui.   Mas as pessoas só ficaram paradas, olhando com espanto. O rei teve que repetir a ordem de deixá-la entrar, antes que alguém se desse conta, e então o próprio mestre de cerimônia a conduziu. E, quando as portas se abriram ao salão real, Lindaura correu diretamente até o rei e pôs sua boneca de trapo sobre seus joelhos.   — Vou te dar ela em vez do barco – disse Lindaura —, porque pensei assim: já que me salvou do lobo, você deveria ganhar a melhor coisa que eu tenho.   A boneca era de fato o presentinho mais feio e desajeitado que se poderia imaginar, muito embora o velho rei tenha sorrido como se estivesse muito contente com aquela dádiva.   — Ela não é bonita? – perguntou Lindaura.   — Sim, muito.   — Então dá um beijo nela!   E então ele teve que beijar aquela boca nojenta desenhada a carvão.   — Como você gostou dela, então você também tem que me agradecer – disse Lindaura, que ficou parada, aguardando o gesto.   — Obrigado – disse o rei, fazendo uma mesura amistosa com a cabeça.   — Não fez certo – disse Lindaura.   — Não fiz certo? Como é para fazer, então?   — Quando se agradece, tem acariciar o rosto – disse Lindaura.   Então o rei teve que acariciá-la, e ela tinha uma bochechinha quente e macia, que não era nada desagradável de pegar.   — Assim... – disse Lindaura.   — Algo mais? – perguntou o rei.   — Sim, agora eu gostaria de acariciar o seu rosto.   Então o rei ficou em dúvida. Agora foi um pouco longe demais, pensou ele.   — Veja, eu cortei minhas unhas – disse Lindaura e estendeu sua mãos roliças diante do rei, de modo que ele as visse, caso quisesse ou não.   Foi quando ele viu algo de anormal nos dedos aparados. As unhas foram cortadas tão rente à pele que não se via nenhum sinal de garras.   — Então, Velho da Barba Grisalha, não pode dizer agora que eu tenho garras – disse Lindaura.   — Não... Hm... Está bem, pode passar a mão!   Lindaura pulou sobre seus joelhos e acariciou as velhas bochechas enrugadas e também as beijou, mas não antes que rolasse sobre elas um par de lágrimas.   Fazia tanto, tanto tempo que o velho rei não recebia um carinho.   E ele pegou Lindaura no colo e a carregou até o balcão.   — Vocês têm a quem queriam – disse ele.   Então rompeu solto um forte brado entre as pessoas lá embaixo.   — Viva nossa princesinha! Viva! Viva! – gritavam elas.   Mas Lindaura, intrigada, perguntou ao rei o que estavam dizendo.   — Estão dizendo que gostam muito de você, por ter mãozinhas tão lindas, que não tem garras, e que jamais vão rasgar ninguém – disse ele.   E então ele beijou as duas mãozinhas, para que todos vissem e, de baixo, as pessoas gritaram novamente:   — Viva! Viva nossa princesinha!   E foi assim que Lindaura se tornou princesa e herdou o reino do velho rei.

Escrito por Anna Wahlenberg


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