Kari Capa Dura
Certa vez, houve um rei que ficou viúvo após a morte de sua rainha, com quem tivera uma filha tão inteligente e bela que não havia princesa mais inteligente nem mais bela em nenhum lugar no mundo. O rei passou muito tempo de luto pela rainha, a quem tanto amara, mas por fim se cansou de viver sozinho e se casou com outra rainha, que era viúva e também tinha uma filha; mas esta era tão má e feia quanto a outra era boa, inteligente e bela. A madrasta e a filha tinham inveja da princesa por ser tão formosa, mas, enquanto o rei estivesse em casa, não ousariam fazer mal a ela, já que ele a estimava muito.
Depois de um tempo, o rei entrou em guerra com outro e foi lutar com suas tropas, e a madrasta pensou que poderia fazer o que quisesse. Então, fez a princesa passar fome, e bateu nela, e a espezinhou em cada canto e buraco da casa. Por fim, a madrasta pensou que tudo isso ainda era bom demais para ela, e a mandou sair para pastorear o gado. Lá foi ela cuidar do gado, levando-o por florestas e colinas. Tinha pouco ou nada que comer, e ficou magra e pálida, e estava sempre chorando e soluçando.
No rebanho, havia um grande touro baio, sempre asseado e macio, que muitas vezes se aproximava da princesa e deixava que ela o afagasse. Um dia, quando ela estava ali sentada, chorando e soluçando, ele veio perguntar de uma vez por que estava sempre tão triste. Ela não respondeu, mas continuou chorando.
— Ah! – disse o touro. — Sei muito bem o que é, embora você não me conte. Está chorando porque a rainha é má com você e quer matá-la de fome. Mas não se aflija por falta de comida, pois na minha orelha esquerda há uma toalha, e, quando você a pegar e abrir, poderá comer todos os pratos que quiser.
Assim ela fez, pegando a toalha e abrindo-a na grama, e veja só! A toalha serviu os melhores pratos que alguém poderia desejar, e também vinho, hidromel e bolo doce. Bem, logo ela voltou a ganhar peso, e ficou tão roliça e corada que a rainha e sua filha magricela ficaram amarelas de inveja. A rainha não conseguia entender como sua enteada podia ter uma aparência tão boa vivendo tão mal, por isso mandou uma de suas empregadas ir atrás dela na floresta, observar e ver o que acontecia, pois achava que algum dos servos da casa devia levar comida para ela. A empregada foi atrás dela e a observou no bosque, e viu como a enteada tirou a toalha da orelha do touro e a abriu, e como a toalha serviu os melhores pratos, que a moça comeu com muito gosto. Tudo isso a empregada contou à rainha quando foi para casa.
E agora o rei voltava da guerra, pois vencera a luta contra o outro rei com que havia batalhado. Assim, houve grande alegria em todo o palácio, e ninguém ficou mais feliz do que a filha do rei. Mas a rainha fingiu estar doente, foi para a cama e pagou uma grande quantia ao médico para fazê-lo dizer que ela nunca mais ficaria bem, a não ser que comesse um pouco da carne do touro baio.
Tanto a filha do rei quanto as pessoas do palácio perguntaram ao médico se não havia mais nada que pudesse ajudá-la, e rezaram muito pelo touro, pois todos gostavam dele e diziam não haver touro como aquele em nenhum lugar no mundo. Mas não, ele precisava e deveria ser abatido, nada mais adiantaria.
Quando a filha do rei ouviu isso, ficou imensamente triste e foi ao estábulo do touro. Lá, ele estava de pé, cabisbaixo, e pareceu tão desanimado que ela começou a chorar por ele.
— Por que está chorando? – perguntou o touro.
Ela contou como o rei tinha voltado para casa, e como a rainha fingira estar doente e fizera o médico dizer que nunca mais ficaria bem, a menos que comesse um pouco da carne do touro baio, e agora ele deveria ser abatido.
— Se me matarem – disse o touro —, logo vão tirar sua vida também. Agora, se concordar comigo, vamos fugir hoje à noite.
Bem, pode ter certeza de que a princesa não gostou da ideia de partir e abandonar o pai, mas achou que era pior ainda ficar em casa com a rainha. Então, prometeu ao touro que fugiria com ele.
À noite, quando todos foram para a cama, a princesa foi até o estábulo do touro, e ele a carregou nas costas e saiu da propriedade o mais rápido que pôde. E quando, com o canto do galo, as pessoas se levantaram na manhã seguinte para abater o touro, ora, ele não estava mais lá; e quando o rei se levantou e perguntou sobre a filha, ela também tinha ido embora. Ele mandou mensageiros por toda parte para procurar por eles, e perguntou em todas as igrejas paroquiais, mas ninguém os tinha visto.
Enquanto isso, o touro passava por muitas terras com a filha do rei nas costas, e um dia chegaram a um grande bosque de cobre, onde tanto as árvores quanto os galhos, folhas, flores e tudo mais eram de cobre.
Mas, antes que entrassem no bosque, o touro disse à filha do rei:
— Agora, quando entrarmos nesta mata, tome cuidado para não tocar sequer uma folha. Senão, estará tudo acabado para nós, pois aqui mora um troll com três cabeças que é dono do bosque.
Não, é claro, a princesa trataria de tomar cuidado para não tocar em nada. Foi muito cuidadosa e se inclinou para lá e para cá de modo a não encostar nos ramos, e os afastou delicadamente com as mãos; mas a mata era tão densa que mal se podia passar por ela. E assim, apesar de todo o esforço, ela acabou por arrancar uma folha, que segurou na mão.
— Ai! Ai! O que foi que você fez? – disse o touro. — Agora não resta nada a não ser lutar pela vida ou pela morte; mas trate de manter a folha a salvo.
Logo chegaram ao limite do bosque, e um troll com três cabeças veio correndo:
— Quem foi que tocou no meu bosque? – perguntou o troll.
— É tão meu quanto seu – respondeu o touro.
— Ah! – rugiu o troll. — Vamos ver quem ganha essa briga.
— Como quiser – disse o touro.
Eles se lançaram um contra o outro e lutaram. O touro chifrou, e espetou, e escoiceou com toda a força e a vontade, mas o troll respondeu na mesma moeda, e a luta durou o dia todo antes que o touro vencesse, e já estava tão ferido e exausto que mal conseguia levantar a perna. Foram obrigados a parar por um dia para descansar, e o touro pediu à filha do rei que pegasse o chifre cheio de unguento pendurado no cinto do troll e o esfregasse nele. Ele se recuperou, e no dia seguinte foram em frente. Assim, viajaram muitos e muitos dias até que, depois de um longo tempo, chegaram a um bosque de prata, onde tanto as árvores quanto os galhos, folhas, flores e tudo mais eram prateados.
Antes de entrar no bosque, o touro disse à filha do rei:
— Agora, quando entrarmos nesta mata, pelo amor de Deus, tome muito cuidado; não deve tocar em nada, nem arrancar uma folha sequer, senão estará tudo acabado para nós, pois aqui vive um troll com seis cabeças que é dono do bosque, e acho que eu não seria capaz de vencê-lo.
— Sim – respondeu ela. — Vou tomar muito cuidado e não tocar em nada que você não queira que eu toque.
Mas, quando entraram no bosque, era tão fechado e denso que mal conseguiam andar. Ela tomou todo o cuidado do mundo, e se inclinou para lá e para cá de modo a não encostar nos ramos, e os afastou com as mãos, mas a cada minuto os galhos batiam em seus olhos e, apesar de todo o esforço, aconteceu de arrancar uma folha.
— Ai! Ai! O que foi que você fez? – disse o touro. — Não resta nada a fazer a não ser lutar pela vida e pela morte, pois esse troll tem seis cabeças e é duas vezes mais forte que o outro, mas trate de manter a folha a salvo, e não a perca.
Assim que ele disse isso, surgiu o troll:
— Quem foi que tocou no meu bosque? – perguntou ele.
— É tão meu quanto seu – respondeu o touro.
— Vamos ver quem ganha essa briga – rugiu o troll.
— Como quiser – respondeu o touro, e avançou rumo ao troll. Furou os olhos dele, e atravessou o corpo com os chifres, fazendo as entranhas jorrarem; mas o troll quase foi páreo para ele, e demorou três dias inteiros até que o touro tirasse a vida dele a chifradas. Mas, novamente, estava tão fraco e exaurido que mal podia mexer uma pata, e tão ferido que o sangue escorria pelo corpo todo. Então ele pediu à filha do rei que pegasse o chifre de unguento pendurado no cinto do troll e o esfregasse nele. Ela assim fez, e ele se recuperou; mas foram obrigados a ficar lá uma semana para descansar antes que o touro tivesse forças para continuar.
Por fim, partiram outra vez, mas o touro ainda não estava bem e, a princípio, andou muito devagar. Então, para poupar tempo, a filha do rei disse que, por ser jovem e leve, podia muito bem caminhar, mas ele não deixou que fizesse isso. Não; ela devia montar nas costas dele. Assim, viajaram por muitas terras por um longo tempo, e a filha do rei nem imaginava aonde iam mas, depois de muito tempo, chegaram a um bosque de ouro. Era tão majestoso que o ouro pingava de cada galho e todas as árvores, galhos, flores e folhas eram de ouro puro. Aqui, aconteceu também o que havia acontecido nos bosques de prata e cobre. O touro disse à filha do rei que não deveria tocá-lo por nada, pois havia um troll com nove cabeças que era o dono do lugar, muito maior e mais robusto do que os outros juntos, e o touro achava que não poderia derrotá-lo. Sim, ela trataria de tomar cuidado para não tocar em nada, ele sabia muito bem disso.
Mas, quando entraram no bosque, era muito mais espesso e fechado que o de prata, e, quanto mais se embrenhavam nele, pior ficava. A mata ficava cada vez mais densa e apertada, até que, por fim, ela achou que não havia jeito nenhum de atravessá-la. Tinha tanto medo de arrancar alguma coisa que se abaixou, se contorceu e se virou para lá e para cá, e daqui para ali, de modo a não encostar nos galhos, e os afastou com as mãos; mas a cada momento os galhos batiam em seus olhos, impedindo-a de ver no que estava se agarrando; e veja só! Antes que percebesse como isso havia acontecido, tinha uma maçã de ouro na mão. Lamentou tanto que irrompeu em lágrimas e quis jogar fora a maçã, mas o touro disse que deveria mantê-la a salvo e vigiá-la bem, e a tranquilizou como pôde; porém, achava que seria uma luta difícil, e duvidava do resultado.
Foi então que surgiu o troll com nove cabeças, e era tão feio que a filha do rei mal se atreveu a olhar para ele.
— Quem foi que tocou no meu bosque? – rugiu ele.
— É tão meu quanto seu – respondeu o touro.
— Vamos ver quem ganha essa briga – rugiu o troll.
— Como preferir – disse o touro. E assim eles se lançaram um contra o outro, e lutaram, e foi uma visão tão pavorosa que a filha do rei estava a ponto de desmaiar. O touro furou os olhos do troll e atravessou o corpo com os chifres até verter as entranhas, mas o troll lutou com bravura; e, quando o touro matava uma das cabeças, o resto a trazia de volta à vida com um sopro, e assim levou uma semana inteira para que o touro conseguisse tirar a vida de todas elas. Mas agora estava totalmente esgotado e enfraquecido. Não conseguia mexer as patas e o corpo todo era um ferimento. Não conseguia nem pedir à filha do rei que pegasse o chifre de unguento pendurado no cinto do troll e o esfregasse nele. Contudo, ela o fez mesmo assim, e o touro se recuperou pouco a pouco; mas tiveram que ficar lá e descansar por três semanas antes que ele estivesse pronto para continuar.
Depois, partiram num passo de caramujo, pois o touro disse que ainda precisavam andar um pouco mais, e assim atravessaram muitas colinas altas e matas espessas. Algum tempo depois, chegaram a um urzal.
— Está vendo alguma coisa? – perguntou o touro.
— Não, não vejo nada além do céu e da charneca selvagem – respondeu a filha do rei.
Então, quando subiram um pouco mais, a paisagem ficou mais plana, e puderam enxergar mais longe.
— Está vendo alguma coisa? – perguntou o touro.
— Sim, vejo um castelinho muito, muito distante – respondeu a princesa.
— Mas não é tão pequeno – disse o touro.
Depois de muito tempo, chegaram a um grande marco de pedras empilhadas, onde havia uma espiga de urze atravessada no caminho.
— Está vendo alguma coisa? – perguntou o touro.
— Sim, estou vendo o castelo mais próximo – respondeu a filha do rei. — E agora está muito, muito maior.
— É para lá que você deve ir – disse o touro. — Bem debaixo do castelo há um chiqueiro, onde você deve morar. Quando chegar, encontrará uma capa toda feita de ripas de madeira; deve vesti-la, ir até o castelo e dizer que seu nome é Kari Capadura, e pedir trabalho e um lugar para ficar. Mas, antes de ir, deve pegar sua faca e cortar minha cabeça, depois retirar meu couro e colocá-lo debaixo da muralha de pedra acolá, e debaixo do couro você deve colocar a folha de cobre, a folha de prata e a maçã de ouro. Lá, encostado à pedra, está um bastão; quando quiser alguma coisa, só precisa bater com ele na muralha.
Primeiro, a princesa não quis fazer nada daquilo; mas, quando o touro disse que era o único agradecimento que aceitaria pelo que havia feito por ela, não pôde dizer não. Então, por mais que isso entristecesse seu coração, ela cortou e talhou o grande animal com a faca até tirar a cabeça e o couro, e colocou o couro debaixo da muralha de pedra, e deixou a folha de cobre, a folha de prata e a maçã de ouro debaixo dele.
Depois disso, foi até o chiqueiro, mas chorou e soluçou o tempo todo. Ali, vestiu a capa de madeira e subiu para o palácio. Quando ela entrou na cozinha, implorou por trabalho e um lugar para ficar, e disse que seu nome era Kari Capadura. Sim, a cozinheira disse que ela poderia ficar lá – talvez conseguisse permissão para trabalhar na lavanderia, pois a moça que antes fazia esse trabalho tinha acabado de ir embora.
— Mas, assim que você se cansar de ficar aqui, aposto que também vai embora.
Não, ela tinha certeza de que não faria isso.
Então, lá estava ela, comportando-se muito bem e lavando com grande habilidade. No domingo seguinte haveria convidados no palácio, e Katie perguntou se poderia levar água para o banho do príncipe, mas todos riram dela e disseram:
— O que você quer fazer lá? Acha que o príncipe vai querer olhar para você, que é medonha?
Mas ela não desistiu e continuou pedindo e implorando, e finalmente conseguiu permissão. Então, quando subiu as escadas, seu manto de madeira fez tanto barulho que o príncipe apareceu e perguntou:
— Diga, quem é você?
— Ah! Vim só trazer água para o banho da Sua Alteza Real – respondeu Kari.
Mas o príncipe disse:
— Você acha que agora vou querer essa água que trouxe? – E, com isso, jogou a água em cima dela.
A princesa teve que aturar isso, mas depois pediu permissão para ir à igreja, e também a conseguiu, pois a igreja ficava perto de lá. Mas, antes de tudo, foi até a pedra e bateu nela com o bastão que estava ali, exatamente como o touro havia dito. E na mesma hora surgiu um homem, que disse:
— Qual é a sua vontade?
A princesa disse que tinha permissão para ir à igreja e ouvir o padre pregar, mas não tinha roupas para entrar lá. Então ele fez surgir um vestido, tão brilhante quanto o bosque de cobre, e ela ganhou um cavalo e uma sela.
Quando chegou à igreja, estava tão bela e majestosa que todos se perguntaram quem poderia ser e mal ouviram o que o padre dizia, pois olhavam o tempo todo para ela. Quanto ao príncipe, este se apaixonou de tal modo que não tirou os olhos dela nem por um instante.
Então, quando a princesa saiu da igreja, o príncipe correu atrás dela, abriu a porta para ela, e apanhou uma de suas luvas, que ficou presa na porta. Quando ela montou no cavalo para partir, o príncipe se aproximou novamente e perguntou de onde vinha.
— Ah! Sou da Banholândia – respondeu Kari; e, quando o príncipe ofereceu a luva, ela disse:
Vem a luz, depois a treva;
A nuvem no céu troveja;
Que este príncipe não veja
Aonde meu corcel me leva.
O príncipe nunca tinha visto nada semelhante àquela luva, e andou por toda parte perguntando pela terra de onde a orgulhosa dama, que partira sem a luva, dissera que vinha. Mas ninguém soube dizer onde ficava “Banholândia”.
No domingo seguinte, alguém precisava levar uma toalha para o príncipe.
— Ah! Posso levá-la? – perguntou Kari.
— O que espera ganhar com isso? – responderam os outros. — Você viu como foi da última vez.
Mas Kari não desistiu; continuou a pedir e implorar até conseguir permissão. Então, subiu correndo as escadas, de modo que a capa de madeira fez um barulho enorme. O príncipe apareceu e, quando viu que era Kari, arrancou a toalha de suas mãos e a jogou na cara dela.
— Suma daqui, sua troll feiosa – gritou ele. — Acha que eu quero uma toalha que você tocou com esses dedos imundos?
Depois disso, o príncipe foi para a igreja, e Kari pediu permissão para ir também. Todos perguntaram o que ela queria fazer na igreja – não tinha nada que vestir, a não ser aquela capa de madeira, tão suja e feia. Mas Kari disse que o padre pregava com muita coragem, que suas palavras faziam bem a ela; e assim finalmente conseguiu permissão.
Foi novamente até a pedra e bateu, e o homem apareceu e deu a ela um vestido muito mais bonito que o primeiro: era todo coberto de prata, e brilhava como o bosque prateado. Ela ganhou também um nobre corcel, com um xairel bordado com fios de prata e um freio de prata.
Então, quando a filha do rei chegou à igreja, as pessoas ainda estavam no pátio frontal, tentando imaginar quem poderia ser aquela. O príncipe logo chegou, se aproximou e quis segurar o cavalo para ela enquanto desmontava. Mas Kari pulou da sela e disse que não havia necessidade, pois o cavalo era tão bem adestrado que parava quando ela pedia e vinha quando o chamava.
Todos entraram na igreja, mas mal houve quem escutasse as palavras do padre, pois olhavam para ela o tempo todo, e o príncipe se apaixonou ainda mais do que na primeira vez.
Quando o sermão terminou, ela saiu da igreja e quis montar no cavalo, e o príncipe se aproximou novamente e perguntou de onde ela vinha.
— Ah! Sou da Toalhândia – respondeu a filha do rei; e, ao dizer isso, deixou cair o chicote de equitação, e, quando o príncipe se abaixou para pegá-lo, ela disse:
Vem a luz, depois a treva;
A nuvem no céu troveja;
Que este príncipe não veja
Aonde meu corcel me leva.
Então, partiu outra vez, e o príncipe não entendeu o que havia acontecido com ela. Andou por toda parte perguntando pela terra de onde ela dissera ter vindo, mas ninguém sabia dizer onde ficava; e assim o príncipe teve que se conformar.
No domingo seguinte, alguém precisava levar uma escova para o príncipe. Kari implorou permissão para fazer isso, mas os outros a fizeram recordar como se saíra da última vez, e a repreenderam por querer aparecer diante do príncipe – feia, suja e medonha que era com aquela capa de madeira. Mas não parou de pedir até que a deixassem levar a escova para o príncipe. Então, quando subiu as escadas fazendo barulho, o príncipe apareceu, pegou a escova e a atirou nela, pedindo que sumisse das suas vistas.
Depois disso, o príncipe foi à igreja, e Kari pediu permissão para ir também. Perguntaram novamente o que queria fazer lá, ela, que era tão feia e suja, e não tinha roupas com que se apresentar. Talvez o príncipe ou alguém mais a visse, e ela e todos os outros seriam castigados por isso; mas Kari disse que todos tinham mais a fazer do que olhar para ela, e não parou de pedir e implorar até conseguir permissão para ir.
E aconteceu como nas duas vezes anteriores. Ela foi até a pedra, bateu com o bastão, e surgiu homem, que deu a ela um vestido muito mais majestoso do que qualquer um dos outros. Era quase todo ouro puro, e cravejado de diamantes; e ganhou também um nobre corcel, com um xairel bordado com fios de ouro e um freio de ouro.
Agora, quando a filha do rei chegou à igreja, lá estavam o padre e todas as pessoas no pátio esperando por ela. O príncipe veio correndo e quis segurar seu cavalo, mas ela pulou para o chão e disse:
— Não, obrigada; não há necessidade, pois meu cavalo é tão bem adestrado que para quando eu peço.
Todos entraram na igreja, e o padre subiu no púlpito, mas ninguém ouviu uma palavra do que disse, pois todos olhavam para ela e imaginavam de onde vinha; e o príncipe estava ainda mais apaixonado que antes. Não tinha olhos nem ouvidos para ninguém, nem vontade de fazer nada senão olhar para ela.
Assim, quando o sermão terminou e a filha do rei saiu da igreja, o príncipe havia mandado derramar um barril de breu na entrada, para que ele pudesse ajudá-la a passar por cima dele. Mas ela não se importou nem um pouco – colocou o pé bem no meio do breu e pulou sobre ele, mas um de seus sapatos dourados ficou preso e, quando ela subiu no cavalo, o príncipe veio correndo da igreja e perguntou de onde vinha.
— Sou da Escovalândia – disse Kari. Mas, quando o príncipe quis devolver o sapato de ouro, ela disse:
Vem a luz, depois a treva;
A nuvem no céu troveja;
Que este príncipe não veja
Aonde meu corcel me leva.
Assim, o príncipe ainda não entendia o que havia acontecido com ela, e passou um bom tempo perguntando pela “Escovalândia” em toda parte; mas, como ninguém soube dizer onde ficava, ordenou que se anunciasse em todos os lugares que ele se casaria com a mulher cujo pé coubesse no sapato de ouro.
Tantas vieram, de todos os tipos e de toda parte, belas e feias; mas não havia ninguém com um pé pequeno o bastante para calçar o sapato de ouro.
Depois de um longo tempo, quem apareceu, senão a madrasta malvada de Kari? E sua filha também, e o sapato de ouro serviu. Por mais feia e repugnante que ela fosse, o príncipe manteve a palavra muito a contragosto. Preparavam a festa de casamento, e ela foi vestida e adornada como noiva; mas, quando estavam a caminho da igreja, um passarinho pousou numa árvore e cantou:
Um pouco do calcanhar
E um pedaço do dedão;
É de Kari o sapatinho,
Em que o pé dela sangrou.
E, quando olharam para o sapato, viram que o pássaro dissera a verdade, pois o sangue jorrava de lá.
Então todas as moças e mulheres do palácio tiveram que experimentar o sapato, mas nenhuma conseguiu calçá-lo.
— Mas onde está Kari Capadura? – perguntou o príncipe, quando todas as outras já haviam experimentado o sapato, pois entendia muito bem o canto dos pássaros e se recordava do que o passarinho havia dito.
— Ah! Bem que ela gostaria! – disseram as outras. — Não adianta chamá-la. Ora, as pernas dela parecem patas de cavalo.
— É verdade, creio eu – respondeu o príncipe. — Mas, como todas as outras tentaram, Kari também pode tentar.
— Kari – ele gritou pela porta; e Kari subiu as escadas e sua capa de madeira fez barulho como todo um regimento de soldados em marcha.
— Agora, você deve experimentar o sapato e ser princesa também – disseram as outras, e riram e zombaram dela.
Então, Kari pegou o sapato e pôs o pé nele como se não fosse nada, e tirou a capa de madeira, e surgiu à vista de todos com seu vestido de ouro, brilhando tanto que os raios de sol se refletiam nele; e veja só! No outro pé ela tinha o sapato dourado que completava o par.
Quando o príncipe a reconheceu, ficou tão feliz que correu até ela, a envolveu nos braços e a beijou. Quando soube que ela era filha de um rei, ficou ainda mais feliz, e fizeram uma grande festa de casamento; e assim,
Corta, corta, já cortou,
E esta história acabou!
Escrito por Kida Dradak
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