A última morada dos Gigantes Prose in Storevender | World Anvil
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A última morada dos Gigantes

O vale e a montanha se alternavam em bela sucessão sob o céu azul da Noruega de milhares de anos atrás, assim como o fazem hoje, e a Corrente do Golfo fluía então como agora, passando pelas costas escarpadas; mas era uma terra muito diferente. Nas florestas densas, nenhum machado tinha sido ouvido contra os fortes troncos que os rios noruegueses carregariam para o mar, para flutuarem até o futuro como nobres navios sobre o coração do oceano; nas baías protegidas, nenhuma casa aninhada com cercanias caprichosamente cuidadas com jardins e campinas; nenhum barco ainda singrava o mar com redes e equipamento de pesca. Os homens ainda não tinham pensado nesta bela terra ao norte como morada. Uma raça de gigantes, de compleição alta e potente, residia ali. A duração da vida deles era medida em séculos, assim como a nossa é medida em anos. Eles rachavam rochas em pedaços com as mãos e deixavam os grandes rios serem um canal livre. Carregavam enormes blocos nos ombros até a orla e construíam castelos cujas torres se assomavam até as nuvens. Suas vozes afogavam o rugido do oceano e assustavam as águias nos ninhos. Mas essa poderosa raça, sob a qual o solo estremecia, tinha um caráter pacífico e inofensivo. Nenhuma querela os dividia e nenhuma inveja amargurava seus corações. Eles moravam juntos, como as crianças de uma grande família.   Seu chefe era Hrungnir. Seus companheiros se submetiam voluntariamente ao seu controle, pois ele se sobressaía a todos em idade, sabedoria e força, como um pai aos seus filhos.   Hrungnir morava em um esplêndido castelo junto ao mar. As montanhas da Noruega tiveram de ceder seus mais preciosos metais para adornar as paredes de sua gigantesca moradia por dentro e por fora. Os inúmeros rebanhos e manadas do chefe vagavam por quilômetros de terra, os ursos das florestas densas foram abatidos às centenas pelas suas mãos para que as peles pudessem cobrir almofadas para seus convidados, e as mesas e copos de chifre reluziam com pedras preciosas. Mas a propriedade mais valorizada por Hrungnir era Guru, sua única filha. Seu cabelo brilhava dourado como as estrelas da noite do norte, seus olhos eram azuis como o céu de sua terra nativa e sua pele era de uma brancura ofuscante. Os gigantes mais poderosos de todo o país desejavam a mão de Guru, e Hrungnir prometeu a filha àquele que se sobressaísse em rapidez na corrida ou cujo braço fosse o mais forte para arremessar rochas enormes. Assim, os gigantes poderosos vieram de seus castelos nas montanhas, onde as tempestades de neve se estendiam pelos picos primitivos, e de fortalezas junto ao mar, de modo que o teto de Hrungnir mal conseguiu dar abrigo à multidão de pretendentes. As mesas fumegavam com inúmeros pratos, os chifres de hidromel eram enchidos várias vezes, e, pelas janelas, as canções dos gigantes soavam com tanta força que as ondas fugiam aterrorizadas de volta para o mar.   Depois do banquete, os gigantes saíram para a costa, partiram enormes massas das rochas e as arremessaram ao mar como crianças jogariam pedrinhas. As massas de pedras voaram bem distantes sobre o oceano, mas nenhuma foi tão longe quanto a jogada pela mão de Andfind, o jovem valente cujo castelo se erguia em meio às rochas de Dovrfjell, destruída por tempestades, cuja riqueza quase se igualava à de Hrungnir, cuja beleza era comparável a da própria Guru. Então, quando os pretendentes se organizaram na orla para a corrida, e as pedrinhas ressoaram sob suas sandálias douradas, Andfind deixou todos os rivais para trás, e seus longos cachos louros flutuavam como pendões dourados na rocha que era a meta da corrida, enquanto os outros pretendentes ainda estavam se arrastando pelo caminho.   Andfind foi vitorioso, e o coração de Guru cantou de alegria, pois ela o amava em segredo havia muito tempo, embora estivesse preparada para se submeter ao desejo do pai, mesmo que ele tivesse escolhido outro como genro.   Longe de invejá-lo e de se tornar rancorosos, os gigantes aplaudiram ruidosamente o vencedor, carregando-o nos ombros até o castelo de Hrungnir, onde o chefe lhe deu as boas-vindas e chamou a filha para conhecer o noivo escolhido.   A adorável Guru apareceu vestindo um roupão azul-céu, com barra bordada em prateado, que ela e suas criadas tinham tecido e decorado no recôndito do salão das mulheres. Ao redor do pescoço branco e dos braços roliços havia joias brilhosas, e seus cachos estavam presos com uma fita dourada. Assim ela veio encontrar os convidados. Hrungnir pegou a mão da filha, colocou-a sobre a mão direita de Andfind e, em seguida, como sacerdote da residência, o chefe os uniu pelos laços indissolúveis do casamento.   A noite caiu ao redor do Castelo de Hrungnir. O chefe e seus convidados estavam deitados em repouso profundo, preparando-se para a alegria de um novo dia. Mas a destruição se aproximou deles, enquanto dormiam, com passos furtivos; pois Odin, aquele rei ardiloso, cuja origem nenhum homem sabia explicar, desceu das montanhas com seus guerreiros confiáveis. Tinham ouvido falar da beleza da Noruega e desejavam conquistá-la para ser seu lar. Tinham ouvido que os mais corajosos da região estavam em um banquete no castelo de Hrungnir e esperaram até a hora do repouso, de modo a poderem atacar os inimigos inconscientes com quem não teriam coragem de lutar em termos de igualdade. A luz da lua deslizava pelas janelas abertas e pousava sobre as formas dos adormecidos indefesos: a respiração profunda dos guerreiros e o murmúrio das ondas eram os únicos sons que o ouvido conseguia distinguir. Mas sombras escuras invadiram o salão iluminado pela lua, formas altas subiram pelas janelas e, sem fazer barulho, segurando as armas com cuidado para não baterem umas nas outras, eles se infiltraram nos quartos. Com uma mira certeira, eles banharam as espadas no sangue do coração dos adormecidos, de modo que, com um último gemido, cada guerreiro entregou seu espírito corajoso. O piso estava coberto de sangue, mas o bando de Odin passava de salão em salão sem escorregar no caminho sangrento.   O gemido da morte, apesar de curto, alcançou o ouvido de Guru. Ela se levantou e prestou atenção. Não, não era um sonho; e o som veio de novo, com uma nitidez apavorante. Ela se vestiu e correu até a janela e, quando abriu a cortina, viu formas desconhecidas no pátio, carregando com dificuldade um fardo pesado. Ela olhou com mais atenção e reconheceu, sob a clara luz da lua, o cadáver ensanguentado de seu nobre pai. Guru correu até o leito de Andfind e sussurrou:   — Acorde, acorde, meu marido, e vamos fugir, pois a traição e a morte entraram na nossa casa!   O trabalho sangrento parecia terminado nos outros quartos, e agora os passos temidos estavam se aproximando.   Guru levantou uma pedra do piso e revelou uma escadaria secreta. Ela fez sinal para Andfind descer e rapidamente o seguiu, fechando a abertura atrás de si.   Por uma passagem estreita que seguia por baixo do castelo e das rochas até a costa, eles alcançaram o mar. Lá, havia um barco balançando, que Guru e suas criadas usavam com frequência para passeios. Os dois subiram nele. Andfind estendeu a vela e assumiu o timão, e o barco flutuou para o mar aberto. Odin tinha vencido. Os mais nobres da terra foram assassinados na vitória inglória daquela noite, e os fracos que restaram da raça dos gigantes foram obrigados a deixar o antigo lar e buscar refúgio em terras desconhecidas. Apesar desse começo desprezível, o reino de Odin foi de sabedoria, poder e benevolência.   Sobre Guru e seu marido nunca mais se soube nada. Se o mar havia engolido o barco em suas profundezas sedentas, ou se as ondas os tinham levado a costas mais felizes, ninguém jamais levou notícias para o antigo lar do casal. Mas, nas noites de inverno, quando as donzelas se sentavam ao redor da fogueira flamejante de pinho e, enquanto fiavam, conversavam sobre a época dos gigantes noruegueses, algumas damas mais idosas contavam às ouvintes trêmulas sobre aquela noite de morte e sobre o misterioso destino de Guru e seu nobre noivo.   ***   O reino de Odin há muito tinha terminado. Sua sabedoria e seus crimes estavam quase esquecidos. Muitos anos antes, Olaf tinha trazido o conhecimento da nova religião cristã e erguido igrejas nos locais dos velhos altares; e, à antiga honestidade e força da nação, foi acrescentado o espírito moderado da religião da cruz.   No ponto em que o castelo de Hrungnir ficara, agora se erguia uma fortaleza quase tão poderosa quanto a do chefe dos gigantes; os rebanhos que a cercavam eram tão grandiosos quanto os dele, e o atual proprietário, Sämund, assim como Hrungnir, contava como seu tesouro mais precioso uma única filha.   Era quase como se os dias de Guru houvessem voltado, pois o cabelo dourado e a pele nevada de Aslog, bem como seus olhos azuis e a forma graciosa, atraíam a corte dos nobres mais ricos e mais poderosos daquela terra.   Quando cada pretendente era rejeitado, o coração de Sämund se enchia de orgulho e esperança. Ela só vai aceitar o melhor e maior, pensava ele. Mas, quando o príncipe mais poderoso da terra apareceu e os lábios da bela moça disseram “não” também para ele, Sämund não elogiou a prudência da filha. Com palavras amargas, ele a repreendeu pela sua tolice e ordenou que ela escolhesse, antes da Noite de Natal, alguém a quem ele pudesse conceder a mão dela.   Os dias iam e vinham, e o rosto de Aslog ficava mais pálido, e os olhos do pai ficavam mais soturnos, pois o coração dela tinha sido entregue a Orm, o jovem pobre e belo que o pai lhe concedera como pajem. O braço forte de Orm havia remado o barco até o mar repleto de dourado, nas agradáveis noites de verão; a mão de Orm guiara Aslog pelos amplos campos de neve, ambos usando sapatos especiais para a neve, com pontas finas e maleáveis como uma folha de faia, enquanto deslizavam rapidamente pelo ar revigorante; e, nas noites mais longas de inverno, enquanto os convidados estavam bebendo e cantando nos corredores da casa do pai, Orm costumava se sentar e lhe contar belas histórias, enquanto Aslog ficava sentada perto do fogo intenso. Sämund adorava o jovem corajoso, mas, se alguém lhe dissesse que ele era o escolhido da filha, teria desafiado o informante para um combate.   Os amantes sabiam disso, e foi com tremor que eles aguardaram o dia decisivo.   — Se ela não escolher alguém antes de eu nomear – disse Sämund a Orm —, eu mesmo vou escolher um noivo, e você terá a honra de carregar a cauda do vestido.   Orm não respondeu, mas, com a mão trêmula, arrumou a mesa para os convidados, trincando os lábios para impedir as palavras sequiosas que seu amor despertava.   Era a noite antes da Noite de Natal – estrelada e fria. Uma porta secreta se abriu na lateral da montanha, e duas figuras disfarçadas saíram. Eram Orm e Aslog. Não tinham levado consigo nada além de uma pequena trouxa com as roupas de que precisariam, um tapete de pele quente e um arco com flechas que Orm pendurara atravessado no ombro.   Eles se apressaram sobre a planície gelada, rápidos e impulsionados pelo medo, como um par de pombos caçados. Chegaram à beira da ampla planície. Os sapatos especiais para neve não eram mais úteis, pois a estrada agora os conduzia para os desfiladeiros e penhascos rochosos das montanhas. Fazia um frio miserável, o vento assobiava pelas fendas da montanha, e seu sopro gelado fez a frágil Aslog tremer. O longo caminho se enroscava nas montanhas cobertas de neve; então, eles chegaram a um denso bosque de abetos, no meio do qual havia uma pequena cabana de eremita.   — Sou eu, Padre Jerome – disse Orm ao velho que veio recebê-los na porta.   — Seja bem-vindo, meu filho! – disse o velho, enquanto o jovem se inclinava para dar um beijo reverente na mão enrugada. — E a donzela ao vosso lado também é bem-vinda ao pobre quartinho do eremita.   O descanso e a refeição leve oferecidos foram aceitos com avidez pela donzela esgotada. Com olhos de piedade, o eremita encarou as feições dela, marcadas pela tristeza, e, quando Orm lhe implorou para unir os dois em matrimônio, o velho, depois de pensar um pouco, cedeu. Esse momento foi tão diferente dos sonhos de Aslog! Não que ela pensasse muito no esplendor e na festividade que deveriam fazer jus ao seu casamento, mas ela sentia amargamente o desejo da bênção do pai.   Quando a cerimônia terminou, eles não podiam mais se demorar. Os viajantes seguiram pelo caminho exaustivo, até que Aslog teria caído, exausta, se não fosse pelo apoio do braço de Orm. Pelo denso bosque de abetos, sobre os caminhos difíceis das montanhas, os dois se apressaram até o primeiro raio da aurora brilhar no céu a leste. Então, Orm apontou para um monte de rochas escuras diante dos dois.   — Ali – disse ele, animado —, ali, minha Aslog, há descanso e segurança.   A coragem de Aslog aumentou. Com energia renovada, ela seguiu pelo solo interveniente até chegarem a uma rocha irregular e alta e entrarem em uma fenda lateral. Estavam em uma caverna, que, apesar de estreita na entrada, se tornava mais alta e mais larga conforme eles seguiam, até formar uma câmara espaçosa. Dessa residência sombria, o cuidado e a consideração de Orm fizeram um lar para sua amada no qual não faltava conforto e nem felicidade, e ali eles viveram em um refúgio seguro enquanto o inverno bloqueava as estradas da montanha. Mas, quando a primavera chegou e os caminhos se tornaram acessíveis, os espiões de Sämund conseguiram explorar mais minuciosamente, e Orm não podia mais sair e voltar livremente por entre as montanhas. Quando as provisões diminuíram, ele foi obrigado a se afastar do abraço choroso de Aslog e partir em uma expedição com seu arco e suas flechas. Por fim, quando, depois de semanas de clima suave, nenhuma viva alma tinha sido vista perto do refúgio, seus medos cederam, e Orm começou a deixar o cuidado de lado e a se aventurar mais longe da caverna. Talvez o pai de Aslog tivesse se cansado da busca infrutífera, ou talvez ele até estivesse nutrindo a intenção de perdoá-los. O coração de Aslog quis acreditar no que ela desejava tão ardentemente, e Orm começou a compartilhar de sua crença. Certa noite, quando a esposa estava dormindo, ele seguiu o caminho em direção ao vale, onde o quartinho do eremita se aninhava no meio do bosque. Seu peito batia forte com a esperança de que o velho pudesse lhe dar boas notícias para levar à sua amada Aslog, que, embora aceitasse suas privações com alguma alegria, estava cada dia mais pálida e frágil. Ele se aproximou de uma rocha destacada, atrás da qual ficava o caminho para a cabana do eremita. Em sua empolgação animada, tinha se esquecido de todo o medo. Seu arco estava nas costas, com a corda frouxa, e a mão segurava o cajado, mas de maneira descuidada. De repente, ele ouviu um farfalhar nos arbustos densos atrás de si, e duas mãos pesadas pousaram no seu ombro. Com grande esforço, Orm se soltou, deu alguns passos para trás e balançou o cajado de maneira ameaçadora. — É ele quem procuramos – gritaram os agressores. — Lembrem-se da recompensa.   Em seguida, pareceu a Orm que todos os arbustos, e até mesmo a rocha marrom atrás dele, criaram vida, de modo que o farfalhar foi ouvido de todos os lados. Rápido como o pensamento, ele bateu com o cajado na cabeça dos dois que o agrediram inicialmente e, antes que os outros conseguissem sair de seus esconderijos, ele tinha se virado e fugido.   No início, houve gritos selvagens, e um som de pés ávidos batendo, mas ele não parou para olhar para trás e logo escapou da visão dos perseguidores. O caminho era longo e difícil, mas Orm era forte e tinha pés rápidos, e não demorou muito até ele retornar à caverna.   Como essa volta para casa tinha sido diferente de suas esperanças anteriores! Aslog estava mergulhada em um sono agradável, com um sorriso feliz nos lábios, como se sonhasse com amor e perdão; e Orm precisava acordá-la em breve e dizer que ela deveria seguir de novo como uma viajante sem lar.   — Acorde, acorde, minha amada – sussurrou, pegando a mão dela —, e vamos fugir, pois os homens de seu pai estão no nosso rastro e precisamos estar bem longe daqui antes da próxima aurora.   Aslog abriu os olhos e encarou, com espanto atônito, os lábios do marido, mas, quando não conseguiu mais duvidar do que ele dizia, levantou-se rapidamente e arrumou as roupas e as peles macias que formavam suas cobertas em uma trouxa organizada. Sem demora, eles saíram da caverna pela entrada estreita e seguiram, não como esperavam, para o castelo de Sämund, mas em direção a um futuro sombrio e desconhecido. A oeste, onde ficava o lar de Aslog, o perigo e a traição aguardavam por eles e, por isso, voltaram seus passos para o norte, para caminhos montanhosos desconhecidos. O ar era brando, a lua brilhava forte no caminho, e o musgo suave não deixava rastro dos passos que pudessem revelá-los a inimigos atentos. Eles caminharam para o norte durante horas. A caverna na rocha estava a quilômetros atrás, e eles estavam distantes do local onde Orm tinha sido visto pelos homens do sogro. Finalmente, Orm se arriscou a seguir para oeste, em direção ao mar. O caminho os conduzia às terras baixas. As névoas invernais ainda estavam suspensas sobre a planície. O olho aguçado de Orm mal atravessava o véu cinza, e Aslog tremeu quando sentiu o abraço gelado. Eles não conseguiam mais saber em que direção estavam indo, mas continuaram em frente, na esperança de chegar em breve a um mar favorável. O rosto pálido de Aslog finalmente apresentou um rubor de alegria quando ela ouviu o murmúrio distante da água. A música familiar soava cada vez mais perto, e os dois logo chegaram a um vale estreito, em cuja ponta se erguia um monte de rochas escuras. — É a costa! – disse Aslog alegremente, enquanto quase corria pelo solo.   Em uma pequena baía, no pé das rochas, havia um barco de pesca. Orm carregou a esposa nos braços pela areia, pois nesse trecho aberto era necessário se apressar ainda mais, já que algum olho hostil poderia vê-los. Ele colocou Aslog no barco com delicadeza, entrou em seguida e, com as mãos trêmulas, estendeu a vela.   O vento parecia querer o bem dos fugitivos. Ele descia das montanhas e enchia a vela branca, de modo que o barquinho disparava pelo mar como um cisne de asas abertas. O sol estava cada vez mais alto, os penhascos da costa nativa agora pareciam apenas uma fileira de colinas baixas; navios orgulhosos singravam não muito longe deles e, no horizonte mais distante, apareceu um grupo de ilhas resplandecendo na névoa dourada. Quando o sol afundou lentamente no horizonte, os navios maiores passaram sem notar os viajantes, e as pequenas ilhas ainda estavam muito longínquas. O rosto de Aslog, que tinha reluzido de esperança, ficou pálido e abatido.   — O que há de errado, minha querida? – perguntou Orm, ansioso.   — Estou com fome – respondeu Aslog, muito fraca.   Orm suspirou profundamente. Eles tiveram de fugir sem esperar para obter provisões, e agora estavam havia vinte e quatro horas sem comida, e as ilhas seguiam longe.   O sol afundou no mar.   — Durma, minha Aslog, durma! – implorou Orm, sem parar. — Você não vai sentir fome enquanto estiver dormindo, e, quando acordar, talvez tenhamos alcançado uma das pequenas ilhas à nossa frente.   Aslog sorriu de um jeito submisso, tirando as peles da trouxa, e se deitou sob seu calor protetor no fundo do barco. As ondas balançavam a pequena embarcação com delicadeza, o remo batia na água em uma monotonia calculada, e os olhos de Aslog finalmente se fecharam e ela adormeceu.   Apenas Orm continuava desperto, vigiando o amplo oceano. A noite havia chegado, mas um sopro quente da primavera ainda pairava sobre o mar. A lua se ergueu lentamente sobre as distantes montanhas da Noruega e inundou o oceano com sua luz prateada. As ondas dançavam reluzentes em volta do barco, as velas e os mastros brilhavam muito, e o cabelo da bela e adormecida Aslog cintilava como ouro. Cheios de amor e de tristeza, os olhos de Orm pousaram no rosto pálido de Aslog. Ele não se permitiu nada além de um descanso curto, e remou durante a noite toda. Quando a manhã chegou, uma grande ilha com árvores em flor, banhada em luz lilás, se estendia diante de seus olhos. O grito de alegria de Orm acordou Aslog, que se levantou e também avistou esse adorável refúgio paradisíaco, que parecia uma oferenda aos viajantes sem lar. Como se fosse guardiã da futura segurança dos dois, uma rocha cinza e alta se erguia na orla, em uma forma semelhante a de uma figura humana gigantesca.   Orm tentou contornar por entre as pequenas ilhas que havia ao redor desse local tentador; mas as ondas, que até então batiam muito delicadamente na costa, agora espumavam e rugiam em torno do barco, e o arrastavam de volta para o mar aberto. Apesar disso, Orm, destemido, se ocupava do timão e do remo, só para ser arrastado de volta, repetidas vezes.   A tarde chegou, e o esforço infrutífero ainda continuava; agora, o sol estava se inclinando em direção ao oeste. A força e a perseverança heroica de Orm finalmente começaram a falhar. Suas mãos sangravam, a fome e a exaustão quase o dominavam; enquanto Aslog, que havia passado de um estado da mais ávida esperança para o mais profundo desânimo, se agarrava, quase inconsciente, ao mastro. Orm pensou que ela estava morrendo. O desespero lhe deu uma força renovada.   — Deus Todo Poderoso, tenha piedade de nós! – gritou ele, em voz alta, para o céu. As ondas imediatamente se submeteram ao nome sagrado; os vagalhões espumantes deslizaram suavemente sob o barco; a embarcação disparou como uma flecha pelo meio das ilhas e se aproximou do paraíso onde a rocha gigantesca, com semblante sombrio, olhava para o barquinho que rumava até a costa suave. Orm saltou do barco, pegou a exausta Aslog nos braços e a carregou até a areia seca e macia. Olhou ao redor, procurando alguma coisa para comer. As árvores frutíferas balançavam as copas em flor à pouca distância, mas ainda não havia chegado a época das frutas. Orm vasculhou a praia com mais ansiedade ainda. E viu um mexilhão bem aos seus pés, depois outro e mais outro. Ele os pegou e ofereceu à esposa quase desmaiada; e ela se sentiu tão renovada pelo alimento leve que conseguiu andar até o centro da ilha, apoiada pelo braço de Orm, procurando um lugar que servisse de abrigo. As árvores em flor pareciam evidência de mãos cuidadosas, mas nenhum rastro, nenhuma pegada revelava a presença animadora de outros seres humanos. Eles seguiram pela ilha verde, sobre a qual o sol estava lançando seus últimos raios dourados. Diante dos dois, havia um espaço aberto no meio da folhagem e, com os corações acelerados de esperança e medo, eles foram se aproximando. Encontraram-se diante de uma casa com arquitetura muito antiga. Suas paredes afundavam tanto na terra e se erguiam tão altas no ar que os abetos mal conseguiam estender seus galhos escuros sobre o telhado escondido. As janelas eram pequenas, e os painéis eram feitos de pele de peixes. A porta era feita de tábuas fortes, firmemente presas com ferro. A casa toda parecia anunciar um desafio às tempestades, e decerto fizera isso durante séculos.   Mas onde estavam seus construtores? Será que estavam dormindo nas profundezas do oceano? Será que o gramado alto das pequenas ilhas balançava sobre seu último local de descanso ou será que ainda estavam sentados, enfeitiçados, atrás da porta presa com ferro e das paredes cinzentas da moradia lúgubre? Com esses pensamentos causando-lhe um leve temor, Orm bateu à porta da casa misteriosa. Nenhum som, nenhum passo lhe revelou que ele fora ouvido lá dentro. Bateu de novo e, depois, uma terceira vez, mas ainda assim não houve movimento. Ele então colocou a mão na tranca pesada; a porta se abriu, e Orm e Aslog entraram em um vestíbulo com piso de pedras. Não havia ninguém para lhes dar as boas-vindas ou para impedir que seguissem em frente. Em uma lateral do vestíbulo havia outra porta. Orm bateu e, quando também não houve resposta, ele a abriu e adentrou em um aposento grande e imponente, com Aslog a seu lado. Não havia ninguém à vista, mas tudo apresentava sinais de mãos organizadas. Um fogo reluzente queimava na lareira e, sobre ele, havia um caldeirão com peixe, cujo aroma saudou os fugitivos famintos como um convite.   — Perdoe-nos, nobre senhor desta casa! – disse Orm, com a voz alta, mas em um tom respeitoso. — É a necessidade, não o abuso, que nos torna intrusos.   Ambos tentaram ouvir, ofegantes, mas continuaram sem resposta. Então, Orm serviu um pouco do conteúdo do caldeirão em dois pratos e os colocou sobre a mesa. A coragem e o conforto cresceu, apesar do temor inicial, e os viajantes apreciaram o alimento de que tanto necessitavam.   Quando a fome estava saciada e os ânimos tinham revivido, eles olharam ao redor. No lado mais distante do aposento, havia duas camas gigantescas, em formato antigo e esquecido havia muito. O fogo sob o caldeirão estava diminuindo, a luz do fim da tarde não entrava mais pelas janelas, e a escuridão só era interrompida pelo fraco brilho das brasas agonizantes. A natureza finalmente reivindicava seus direitos. Os olhos dos viajantes estavam quase se fechando e, deixando de lado todo o medo, eles tomaram posse das camas em que formas certamente gigantescas teriam repousado antes.   Quando acordaram, o sol estava brilhando forte lá fora, mas os raios entravam fracos pelos painéis brutos das janelas. As portas estavam fechadas com firmeza e não havia rastros de passos humanos, mas o fogo voltara a queimar na lareira; do caldeirão borbulhante, subia uma fragrância tentadora, e a mesa estava posta para uma refeição.   — Está vendo, querido Orm? – gritou Aslog alegremente, apontando para o fogo e para a mesa. — Esta linguagem é fácil de entender, apesar de ser silenciosa. Os proprietários invisíveis desta residência conhecem as nossas necessidades e nos dão boas-vindas sob seu teto hospitaleiro.   Depois de, mais uma vez, compartilharem o conteúdo do caldeirão borbulhante, Orm e Aslog foram para o salão e encontraram uma escada que levava a um quarto pouco abaixo do telhado disfarçado. Este, e o salão onde tinham passado a noite, eram os únicos cômodos da casa, mas lá existia tudo que era necessário para uma vida de reclusão. Não havia nenhum sinal de habitantes, mas parecia que alguém tinha estado ali recentemente, e que suas mãos tinham arrumado tudo com amor para os pobres sem lar. Eles entenderam a linguagem silenciosa e permaneceram satisfeitos na casa dali em diante, aproveitando a doce sensação de que enfim tinham uma casa.   Orm nunca jogava a rede no mar sem arrastar um rico suprimento de peixes deliciosos; as armadilhas que ele colocava de manhã para os pássaros nunca estavam vazias à noite. As árvores frutíferas produziam em abundância, e Aslog se ocupava muito com a rica colheita e o armazenamento.   O verão terminou, e o curto outono estava quase acabando quando um adorável bebê veio alegrar os corações de Orm e Aslog durante o lúgubre inverno. A criança foi chamada de Sämund, e, aos pais, soava como uma promessa de futura reconciliação.   Certo dia, Orm estava com o filhinho no colo, observando com alegria os sorrisos do bebê, e Aslog estava à lareira, preparando a refeição do meio do dia, quando uma sombra alta passou pela janela, a pesada porta da casa se abriu e uma batida alta foi ouvida na porta do salão. Aslog deixou a colher cair, horrorizada, e até o corajoso Orm apertou o bebê junto ao coração quando o visitante apareceu. Uma mulher gigantesca entrou no salão. Sua estatura era a maior que Orm e Aslog jamais tinham visto em sua poderosa nação. A mulher usava um roupão azul-céu com a barra bordada em prateado; uma fita dourada prendia seu longo cabelo branco-neve e, nas feições que um dia foram belas, séculos de alegria e tristeza pareciam ter deixado seus rastros.   — Não tenham medo – disse a visitante majestosa, com uma gravidade gentil. — Esta é a minha ilha, e esta é a minha casa, mas eu lhes dei tudo com alegria quando soube do seu tormento. Só peço uma coisa a vocês. A Noite de Natal está se aproximando. Nessa única noite, me deixem ocupar o salão por algumas horas, enquanto realizamos nossa festividade anual. Mas vocês precisam fazer duas promessas: não dizer uma palavra durante a comemoração e não fazer nenhuma tentativa de ver o que está acontecendo no cômodo abaixo. Se vocês garantirem isso, podem morar aqui sem serem incomodados, e podem aproveitar a minha proteção até desejarem ir embora da ilha.   Com os corações leves, Orm e Aslog fizeram as promessas, e a majestosa dama baixou a cabeça prateada em uma despedida graciosa e saiu pela porta.   Era Noite de Natal; Aslog tinha limpado e arrumado o salão com mais cuidado do que o costumeiro. As tábuas estavam branco-neve, e Orm espalhou sobre elas ramos de abeto delicadamente partidos. O fogo ardia cintilante na lareira varrida com capricho e, sobre ela, estava pendurado o caldeirão reluzente. Aslog enrolou o bebê na pele mais macia que cobria sua cama e foi com Orm para o quarto no andar de cima, onde ficaram sentados ao lado da chaminé aquecida que começava no andar de baixo e que, por necessidade, passava pelo segundo andar.   Durante muito tempo, tudo estava em silêncio. De repente, um som doce e suave foi ouvido; outros se seguiram, e logo a música cresceu em ondas melódicas pelo ar noturno. Aslog ouvia em transe, enquanto Orm foi até a cumeeira do telhado e, já que isso não era proibido, abriu a janela que, durante o dia, servia para deixar o ar e a luz entrarem.   Havia movimento em toda a ilha. Pequenas formas enrugadas, com rostos sérios e envelhecidos, estavam se movimentando com tochas acesas nas mãos. Corriam com sapatos secos por sobre as ondas e abriam caminho até a rocha que protegia a entrada da baía. Quando a alcançaram, formaram um círculo a seu redor e se sentaram no chão em uma humildade respeitosa. Em seguida, uma forma alta se aproximou, vinda do centro da ilha. Os anões abriram o círculo para admiti-la, e Orm reconheceu, na luz trêmula, a nobre dama que poucos dias antes lhes fizera uma visita inesperada. Seu roupão azul-céu e o dourado no cabelo reluziam com ainda mais brilho do que antes. Ela se aproximou da rocha, jogou os braços ao redor da pedra fria e ficou assim por um instante, em um abraço silencioso. De repente, a pedra adquiriu vida e movimento. Os membros gigantescos foram libertados da petrificação, os cabelos rolaram sobre os ombros, os olhos começaram a reluzir mais uma vez com vida. Como se despertasse do sono da morte, o gigante se ergueu, pegou a mão da dama majestosa, cujo abraço amoroso o trouxera de volta à vida, e ambos se viraram para a casa, enquanto os anões os acompanhavam com tochas acesas e uma melodia fascinante. O chão parecia tremer sob as pegadas dos gigantes. Eles logo chegaram à porta da casa. Orm fechou a janela e voltou para onde a esposa estava sentada ao lado da chaminé. No andar de baixo havia pratos batendo e muitos pés tamborilando; o jovem casal ouvia todos os sons através da chaminé larga. A voz forte do gigante de pedra parecia um trovão aos ouvidos humanos, e a voz da dama, que Orm e Aslog tinham ouvido uma vez, era como as poderosas notas de um instrumento musical. Mesas e cadeiras foram afastadas, e ouvia-se o som de copos de chifre se encontrando; o banquete estava começando, e o casal ouvia mais uma vez a música que tanto tinha deixado Aslog embevecida de encanto. Em seguida, um desejo irresistível de ver a companhia maravilhosa que Orm tinha descrito a tomou. Ela se levantou e tateou em busca de uma rachadura no chão, através da qual era possível ver o salão no andar de baixo. Em silêncio, Orm levantou a mão para deter sua precipitação fatal, mas o movimento acordou o bebê adormecido, que, apavorado pelos sons incomuns no andar de baixo, deu um grito que atingiu o coração da mãe. Esquecendo-se de tudo, exceto da agonia do filho, ela começou, como fazia sempre, a acalmá-lo com palavras carinhosas. De repente, um grito terrível e um tumulto bárbaro vieram do andar de baixo, a música parou e, do outro lado da porta, os anões dispararam em uma comoção desordenada. As tochas foram apagadas, o barulho da fuga soou por alguns instantes, e a noite e o silêncio reinaram no lugar que um minuto antes retumbava com uma alegria festiva.   Mortalmente aterrorizada, Aslog havia afundado de novo na poltrona, tremendo, esperando o destino que sua ousadia havia trazido para as pessoas que ela amava. Foram horas de ansiedade que eles passaram no quarto superior escuro, quase mais ansiosas do que as horas de sua fuga e daquela luta difícil contra as ondas. A manhã finalmente nasceu. Um raio de sol claro atravessou um buraco na janela e acordou o menino, que começou a chorar de frio e de fome. Seu amor pelo filho dominou o medo, e Aslog convenceu o marido a descer com ela e saber qual era seu destino. Eles desceram a escada, tremendo a cada degrau. Agora estavam na porta do salão e ouviam. Não havia nenhum som – tudo estava parado como a morte. Finalmente, eles levantaram a tranca; Aslog apertou o filho no peito e entrou no salão. Um grito alto escapou de seus lábios. Na ponta distante do salão, no assento de honra da mesa, estava sentado o poderoso gigante, cujo despertar Orm havia testemunhado; mas a vida mais uma vez escapara de suas veias, e ele estava sentado ali como uma massa fria e cinza de pedra. Parecia, para Aslog, que a mão de pedra que continuava segurando o copo de chifre ainda poderia se levantar para lançar a destruição sobre ela e as pessoas que amava. Ela observou com pavor atônito aquela figura, os olhos passando lentamente da cabeça imóvel para as dobras maciças da roupa de pedra. Aslog percebeu outra presença, esta no chão, sem movimento, como se estivesse em profunda angústia. O rosto estava encostado na pedra fria, mas o roupão azul com barra bordada em prateado e o cabelo branco espalhado revelaram a uma Aslog apavorada de quem se tratava. — Andfind, meu Andfind! — gemia a dama gigante, finalmente levantando o rosto. — Nunca mais sorrireis para vossa fiel Guru nem vos regozijareis com ela em vosso curto espaço de vida e liberdade.   Aslog soltou um grito, mas não, como antes, de pavor pelo próprio destino, mas de angústia e remorso. O grito amargo fez até mesmo a giganta derrubada pela tristeza levantar a cabeça.   — Não chore – disse ela delicadamente — e não tenha medo; eu poderia matá-la com facilidade e destruir esta casa, que lhes dei como lar, feito um brinquedo de criança. É verdade que seu esquecimento provocou uma angústia incomensurável em mim, mas a vingança daqueles que detêm o poder deve ser o perdão! Portanto, não chore; não há nada a temer.   — Ah, não é só isso! – soluçou Aslog. — Os nomes que citou, nobre dama, partiram meu coração. Eles me lembram de uma lenda que eu sempre ouvia quando era criança, sobre Guru, a bela donzela gigante, que foi obrigada a fugir do cruel Odin com seu amado Andfind. A história do destino dos dois sempre me tocou profundamente e, quando escutei esses nomes, pensei que você talvez fosse aquela Guru, e esse pensamento renovou o meu remorso.   A giganta parecia afundada em uma meditação sonhadora.   — E eles ainda se lembram de nós na antiga terra natal? – disse ela, finalmente — E ainda resta algum salão no castelo de Hrungnir? — Não, nobre dama – respondeu Aslog —, eles há muito viraram pó, pois inúmeros séculos se passaram na Noruega desde aqueles dias. É verdade que um castelo orgulhoso ainda se assoma sobre as ondas espumantes, mas é de propriedade de Sämund, de quem sou filha única.   — Nosso destino, ó, filha da minha antiga casa, é impressionantemente semelhante – disse Guru — Mas sua vida terá um final mais feliz do que a minha. Moramos aqui em felicidade e sem perturbações durante muitos séculos, pois foi para esta ilha que nosso barco confiável nos trouxe naquela noite de morte. Esta casa, que os braços fortes do meu marido construíram para ser o nosso lar, é pequena e pobre em comparação aos salões do meu pai, mas não sentimos falta do esplendor perdido. Os dias se passaram em uma felicidade tranquila, e não sentíamos mais saudade da terra que nos expulsou e aos nossos amigos. Os anões, que, como nós, também tinham dado as costas para um país inóspito, se estabeleceram ao redor nas pequenas ilhas e moraram aqui no coração da terra em paz e contentamento. Toda noite de Natal nós nos encontrávamos neste salão e fazíamos festa como nossos antepassados faziam antes mesmo de sua religião se espalhar para as terras ao norte. Séculos se passaram e, certa noite, eu estava com Andfind na orla da nossa ilha, olhando para o mar. No horizonte, ao norte, apareceu um barco majestoso, e Andfind, cujos olhos eram mais aguçados que os das águias, e que tinha o poder de ver o futuro, reconheceu que o homem na proa era um poderoso inimigo da liberdade da Noruega e da nossa autoridade. Era Olaf, que vocês chamam de santo, que, não muito tempo depois, dominou os príncipes da Noruega em uma noite e destruiu os últimos vestígios dos antigos ritos. A presciência prudente do meu marido viu tudo isso e, com um esforço tremendo, ele soprou as ondas furiosas, de modo que elas ameaçaram estraçalhar o barco de Olaf. Mas o invasor rezou, como vocês fizeram quando se aproximaram da nossa costa, e o mar furioso ficou calmo. Andfind estendeu a mão para empurrar a embarcação que se aproximava da costa, mas Olaf, levantando as mãos para o céu, disse, em um tom de inflexível condenação: “Transformai-vos em pedra de agora em diante!” Os olhos em que eu estava acostumada a ler todos os desejos do meu marido se fecharam imediatamente, a mão que segurava a minha se tornou fria e dura, a forma tão cheia de vida e beleza se transformou em pedra insensível, e meu amado Andfind virou uma rocha cinza e sem vida na orla. Os invasores continuaram navegando em direção à costa da Noruega, e eu permaneci desolada e solitária na ilha.   Apenas uma vez por ano, na noite de Natal, gigantes petrificados recebem permissão para ter poucas horas de vida, contanto que alguém da raça deles os abrace. Mas cada abraço tira séculos da minha própria vida. Eu amava demais meu marido para não lhe oferecer esse sacrifício voluntariamente, para que nós dois pudéssemos aproveitar, uma vez por ano, algumas horas de interação. Nunca contei quantas vezes ele despertou para a vida com o meu abraço, quantos séculos da minha vida entreguei pelo bem dele; não desejo saber em que dia eu, quando abraçá-lo, também vou me transformar em pedra e ficar na orla dali em diante para sempre com meu Andfind. Mas, agora, tudo acabou — concluiu Guru. — Nunca mais poderei despertar meu amado, pois um olho humano, uma voz humana, perturbou o festival sagrado da nossa raça espiritual. Meu Andfind deve permanecer como pedra até o dia em que todas as rochas e montanhas da velha Noruega pereçam nas ruínas do mundo. Ela jogou os braços mais uma vez ao redor da pedra fria, levantou sua harpa dourada do chão e se virou para Orm e Aslog, que tinham ouvido com uma tristeza silenciosa.   — Adeus! – disse ela. — Deixo para vocês minha proteção e minha bênção. De agora em diante, são seus os vasilhames caros que decorarão nosso painel festivo; não preciso mais deles. Vivam em paz e felicidade nesta casa até voltarem para receber o perdão de Sämund, e tenham uma vida de alegria no que um dia foi meu lar.   Ela saiu, e os convidados tristonhos a seguiram até a porta. Sem olhar para trás, Guru deslizou por entre as árvores sem folhas; seu roupão azul reluziu a uma grande distância na planície coberta de neve. Orm e Aslog a observaram atravessando as ondas, até as pequenas ilhas; depois, não a viram mais.   Será que ela havia descido com a música de sua harpa dourada para os vagalhões frios? Ou foi governar como rainha no reino dos anões? Orm e Aslog nunca souberam o destino dela, mas as profecias de Guru foram cumpridas em abundância.   A doença e a desgraça se mantiveram distantes da ilha. Orm e Aslog eram felizes no amor mútuo, fortes de corpo, alegres de espírito, satisfeitos até mesmo no isolamento. O filho crescia diariamente, bonito, forte e obediente; as árvores davam o dobro de frutas, o mar cedia sua dádiva mais livremente do que nunca, e as armadilhas de pássaros nunca ficavam vazias. A luz do sol e a fragrância das flores enchiam o ar, e eles bebiam da vida e da felicidade a cada respiração. E, quando o inverno chegava, e a tempestade se enfurecia ao redor da casa, os pesados flocos de neve descendo pelos galhos de abeto quebrados e batendo na janela, a pequena família se sentava, aconchegada, na casa protegida; a madeira seca queimava reluzente na lareira, e Aslog fazia redes enquanto Orm escavava um novo remo e a criança ouvia avidamente as histórias da Velha Noruega. Anos e anos se passaram e não deixaram rastros de preocupação nos rostos dos exilados solitários, mas, quando Aslog pensava no pai, uma sombra cruzava sua testa branca, e a antiga nostalgia pelo amor e pelo perdão dele despertava.   Era o começo da primavera. As árvores frutíferas exibiam suas coroas de flores, e os raios de sol brincavam nos galhos escuros de abeto no telhado da casa solitária. A porta se abriu, e Orm, acompanhado de Aslog e do menino, saíram, carregando um dos vasilhames que Guru tinha deixado como presente de despedida para os hóspedes. Os utensílios que sua mão maternal tinha oferecido se tornaram gastos no decorrer dos anos, e Orm estava indo à costa da Noruega para vender a taça de ouro e, com seu lucro, comprar materiais de que precisavam. Ele havia adiado muito essa tarefa, pois ainda temia o olho aguçado da traição e da vingança; mas a necessidade deles era urgente, e não poderia haver mais demora.   A partida foi amarga. Aslog o abraçou várias vezes, e até as palavras proféticas de Guru perderam o poder de consolar. Mas Orm, apesar de seu coração estar longe de leve, acalmou-a com uma promessa de rápido retorno; depois, se afastou, entrou em um barco e o empurrou para longe da costa.   O barco voou como uma gaivota sobre as ondas, pelo círculo das pequenas ilhas, e seguiu para o mar aberto. Um vento tão fresco quanto o que favorecera a fuga deles agora soprava do norte para encher a vela branca. Orm guardou os remos e observou o barco disparar sobre as ondas cintilantes. Ele direcionou o curso para sudeste. Quando estava se aproximando da tarde, a orla de sua terra nativa apareceu no horizonte; e, muito antes do pôr do sol, o barco navegou pelas águas estreitas do fiorde Trondheim e parou no cais da velha cidade real. Orm seguiu pelas ruas com passos apressados e, com o vasilhame precioso embaixo do braço, entrou na loja de um ourives.   O homem pareceu maravilhado com o metal rico e o trabalho manual raro e elaborado, e pagou sem resistência o preço pedido. Orm correu feliz para outro prédio, para fazer suas compras. Havia uma grande multidão de compradores e, temendo que algum velho conhecido pudesse estar entre eles, Orm virou de lado e analisou as mercadorias em silêncio.   — Bem-vindo, amigo! Qual é a novidade nas suas montanhas? – disse o mercador, para um homem do campo que tinha acabado de entrar.   — Obrigado, senhor. Não muito boas – respondeu o recém-chegado.   — O que houve? – perguntou o mercador. — Seu mestre, o rico Sämund, não está bem? Ele ainda não se rendeu ao destino?   Orm ouvia com ansiedade.   — Logo tudo acabará – respondeu o homem do campo. — O luto pela filha está partindo seu coração. Ele está doente, solitário e triste. Proclamou por toda a terra que vai perdoar os fugitivos se eles retornarem; e prometeu uma grande recompensa a qualquer um que lhe traga a menor notícia dos dois. Mas eles parecem ter desaparecido, e é muito provável que o velho morra sem um parente para fechar seus olhos no último sono.   Orm não pensou mais nas compras; só pensou em Aslog e seu pai moribundo. Sem ser notado na multidão, ele saiu da loja. Mal tinha virado a primeira esquina e correu velozmente até o cais, desceu os degraus, soltou o barco e, com os últimos raios do sol se pondo, navegou com habilidade pelo fiorde estreito, por entre todas as embarcações maiores, remando em direção ao oceano. Seu coração batia com empolgação e com uma nostalgia ansiosa. Uma reconciliação com o pai de sua amada Aslog não era o desejo mais cultivado do seu coração e do dela, apesar de Orm ter se silenciado sobre o assunto, pelo bem de Aslog?   Era noite quando o barco saiu do fiorde e navegou para o mar. O vento, que tinha soprado em direção à terra o dia todo, tinha virado e, soprando agora das montanhas norueguesas, conduziu o barco de Orm com a rapidez de uma flecha sobre as águas. A lua nascia clara e cheia sobre sua terra nativa, e as ondas empurravam o borrifo prateado contra a quilha. Orm só conseguia pensar naquela noite em que Aslog estava deitada, faminta e exausta, aos seus pés – atrás deles, o terror e a traição –, diante de um futuro desconhecido. A radiação clara da lua e as ondas cintilantes eram as mesmas agora e então, mas em todo o resto a mudança era muito abençoada!   Assim a noite passou e, quando o leste começou a brilhar vermelho, o barco deslizou por entre as pequenas ilhas. Quando o primeiro raio caiu nas copas dos abetos, Orm desceu na costa de sua ilha familiar.   Ele mal gastou tempo amarrando o barco. Correu sob as árvores frutíferas em flor – com as mãos vazias, é verdade, mas com um presente mais rico do que Aslog teria ousado desejar.   Postou-se ao lado da cama dela.   — Acorde, acorde, amada! – sussurrou enquanto se dobrava sobre ela. — Trago notícias do seu pai, as melhores notícias que seu coração poderia desejar: amor e perdão! Aslog acordou, e seus olhos iluminados e as lágrimas silenciosas que escorriam sobre as mãos entrelaçadas demonstravam uma alegria mais profunda do que Orm havia imaginado enquanto se apressava para casa.   Logo tudo virou uma confusão no salão tranquilo. Mais uma vez Aslog acendeu o fogo; mais uma vez o café da manhã borbulhava no caldeirão, enquanto ela enfeitava a si mesma e ao filho com ornamentos festivos, e Orm carregava os presentes de Guru, de ouro e pedras preciosas, até o barco. Mais uma vez eles se sentaram à mesa e desfrutaram as provisões do lar hospitaleiro de Guru. Eles contemplaram as paredes imponentes que lhes deram abrigo e olharam com tristeza para a forma empedrada de Andfind, que durante anos foi um membro silencioso do pequeno lar. Em seguida, Orm pegou a mão da esposa, e eles saíram da casa, fechando cuidadosamente a porta, e seguiram o menino, que tinha corrido na frente, ansioso, em direção à orla.   — Adeus, adorável ilha! – gritou Orm, enquanto soltava a corda. — Se algum dia fugitivos caçados pousarem em sua orla, seja para eles um lar tão doce quanto foi para nós.   A criança já estava sentada no barco, brincando com os belos vasilhames de ouro e pedras preciosas, e Aslog sentou-se ao lado dele para falar do novo lar e de seu querido avô, enquanto Orm mergulhava os remos e o barco deixava a costa da última morada dos gigantes.   O sol estava quase afundando no mar; seus raios lançavam um olhar de despedida sobre as janelas do castelo solitário, na rocha que, no passado, ressoara com risadas e comemorações. Agora, os salões esplêndidos estavam desolados. Os criados, servindo não por amor, mas por medo, obedeciam em silêncio triste aos comandos do mestre soturno. A filha, a única que seu coração frio já amara, estava perdida para ele. Sua idade avançada era solitária e desolada, e seu orgulho desmoronou.   — E daí se ela desgraçou a minha casa escolhendo o serviçal em vez do príncipe? Ela ainda é minha filha, minha única filha, e sempre foi querida e amada por mim! Ah, tragam de volta minha filha, minha Aslog, para que eu veja seu rosto antes de morrer!   Ricas eram as recompensas oferecidas pelo pai entristecido por qualquer notícia da filha, mas ele esperou dias e semanas em vão. Ela parecia perdida para sempre.   — Levem-me para fora, para que eu possa ver o sol enquanto ainda tenho visão! – disse para os criados, enquanto o sol da tarde entrava pelas janelas do castelo. Os criados apoiaram seu corpo cambaleante até a beira da rocha. Sämund mandou que fossem embora e o deixassem com sua tristeza.   O sol afundava como uma bola de fogo no oceano, e o mar rolava as ondas roxas do horizonte mais distante e quebrava-as em um borrifo dourado aos pés da rocha do castelo.   — Que bom seria se minha idade avançada pudesse ser calma e clara como este doce fim de tarde, e que bom seria se minha vida pudesse afundar no esplendor como o sol no mar!   Em seguida, ele ouviu, ao longe, o barulho de remos batendo na água, e seu olho, gasto pela velhice, examinou ansioso o horizonte. Um barco, gentilmente conduzido pelo vento, vinha navegando do noroeste. Ele se aproximava cada vez mais, e parecia direcionar seu curso para a rocha onde o velho estava. No timão, havia uma forma masculina e, na proa, uma mulher graciosa, em pé, com um menino bem ao seu lado. Seu cabelo reluzia dourado, como o da filha de Sämund costumava fazer; e, agora, ela levantava a mão e acenava com um lenço branco, em um cumprimento ávido. O coração de Sämund bateu com um pressentimento feliz, e ele não sentiu mais fraqueza, mas se levantou sem ajuda do paredão de pedra e fixou o olhar no barco que se aproximava. A pequena embarcação tinha chegado ao pé da rocha. Ele ouviu a corrente chacoalhando ao redor de uma estaca, e o som de vozes familiares subiu até o ar do fim da tarde. Não era um sonho. Escutou passos leves ao seu lado e, quando se virou para olhar, Aslog, sua Aslog perdida, estava ajoelhada diante dele, os olhos cheios de uma penitência humilde; e, ao lado dela, havia um menino de cabelo louro, também ajoelhado, que estendeu as mãos para o velho e ecoou as palavras da mãe com um sotaque infantil:   — Ó, avô, nos perdoe e nos ame!   O velho abriu os braços, levando os suplicantes até o coração e, enquanto beijava o adorável neto, disse, em uma voz mais branda e suave do que costumava:   — Obrigado, Deus! Não vou morrer sozinho, no fim das contas!   E não morreu. Dia a dia ele sentia cada vez mais o antigo vigor e, quando viu como Aslog amava o marido com ternura, como Orm era um marido e pai fiel, e um filho obediente a ele, esqueceu-se de todas as suas decepções – até mesmo do diadema real que Aslog havia rejeitado. O amor da filha e do neto tornaram seus últimos dias os mais iluminados, e assim o desejo daquele fim de tarde de primavera foi realizado: sua velhice foi calma e clara, e sua vida mergulhou em esplendor como o sol no mar.

Escrito por Rivanna Thrilad


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