A História de Deirdre
Havia um homem na Irlanda chamado Malcolm Harper. Era um
homem bom e tinha uma boa cota de bens materiais. Tinha uma
esposa, mas não uma família. Um dia, ouviu falar que um profeta
havia chegado por aquelas paragens e, como se tratava de um
senhor decente, Malcolm desejou que o profeta se aproximasse
dele e de sua esposa. Tendo sido convidado ou por vontade
própria, o profeta foi à casa de Malcolm.
— O senhor está fazendo previsões? — pergunta Malcolm.
— Sim, algumas. Você precisa de uma previsão?
— Bom, eu não me importaria de ouvir uma previsão sua, se
o senhor tivesse uma para mim e quisesse me contar.
— Pois farei uma para você. Que tipo de previsão quer?
— O que eu queria era que o senhor visse a minha sorte ou
o que vai acontecer comigo, se puder me informar sobre isso.
— Eu vou lá fora e, quando voltar, lhe direi.
Então o profeta saiu da casa. Não havia passado muito
tempo quando ele voltou.
— Muito bem — disse o profeta —, minha clarividência diz
que, por causa de uma filha sua, será derramada a maior
quantidade de sangue em Erin20 desde o início dos tempos. E os
três heróis mais célebres que já existiram perderão a cabeça por
causa dela.
Um tempo depois, Malcolm teve uma filha. Ele não permitiu
que ninguém fosse à sua casa, apenas ele e a parteira. Então
pediu à mulher:
— Você pode criar essa menina e mantê-la escondida longe
daqui, onde nenhum olho possa vê-la e nenhum ouvido ouça
uma palavra sobre ela?
A mulher concordou, então Malcolm escolheu três homens e
os mandou embora para uma grande cadeia de montanhas,
distante e fora de alcance, sem que ninguém soubesse ou os
visse. Ele ordenou que buscassem um outeiro, redondo e verde,
no meio das montanhas, e que então o local fosse
cuidadosamente encoberto, de forma que um pequeno grupo
pudesse viver ali. Isso foi feito.
Deirdre e sua mãe adotiva moraram numa cabana no meio
das montanhas, sem que ninguém soubesse ou suspeitasse da
existência delas, até que a menina completou dezesseis anos.
Deirdre cresceu alta e esguia como em uma fenda no musgo. Era
a criatura de forma mais bela, de aspecto mais adorável e de
natureza mais gentil que existia entre a Terra e o céu em toda a
Irlanda — qualquer que fosse a tonalidade de sua pele antes,
não havia ninguém que olhasse em seu rosto sem fazê-la corar
violentamente.
A mulher responsável por cuidar de Deirdre transmitiu a ela
todo o conhecimento e todas as habilidades que tinha. Não havia
uma folha de grama brotando, nem um pássaro cantando na
floresta, nem uma estrela brilhando no firmamento cujo nome
Deirdre não soubesse. Mas havia um porém: a mulher não queria
que a jovem se envolvesse — para o bem ou para o mal — com
qualquer homem vivo em todo o mundo. Mas, numa noite
sombria de inverno, com nuvens negras e carrancudas, um
caçador percorria as colinas, cansado, e aconteceu de ele perder
o rastro da caça, seu rumo e seus companheiros. Uma
sonolência tomou o homem enquanto vagava pelas montanhas,
então ele se deitou ao lado da bela colina verde onde Deirdre
morava e dormiu. O homem estava fraco, por causa da fome e
da caminhada, e entorpecido pelo frio, e um sono profundo caiu
sobre ele. Quando se deitou ao lado da colina verde onde
Deirdre vivia, teve um sonho conturbado, e pensou que
desfrutava do calor de uma torre encantada, as fadas lá dentro
tocando música. Em seu sonho, o caçador gritou perguntando se
havia alguém na torre e pedindo que o deixassem entrar pelo
bem do Sagrado. Deirdre ouviu a voz e disse à mãe adotiva:
— Ah, mãe adotiva, que grito é esse?
— Não é nada, Deirdre. Apenas os pássaros desgarrados
procurando uns aos outros. Mas deixe que passem para a
clareira. Não há abrigo ou casa para eles aqui.
— Ah, mãe adotiva, o pássaro pediu para entrar pelo amor
do Deus dos Elementos, e você mesma me diz que devemos
fazer tudo o que for pedido em Seu nome. Se não permitir a
entrada do pássaro que está sendo açoitado pelo frio e morrendo
de fome, não terei em alta conta sua palavra ou sua fé. Mas,
como acredito na sua palavra e na sua fé, as quais você me
ensinou, eu mesma deixarei entrar o pássaro.
Então Deirdre levantou-se e puxou o ferrolho da porta,
deixando entrar o caçador. Ela pôs à mesa um lugar para se
sentar o homem que entrou na casa e serviu-lhe comida e
bebida.
— Ah, por sua vida e suas vestimentas, senhor que entrou,
modere a língua! — disse a velha. — Não é pedir demais que
mantenha a boca fechada e a língua quieta quando recebe
abrigo e o fogo de uma lareira em uma noite sombria de inverno.
— Bem — disse o caçador —, posso fazer isso. Manterei
minha boca fechada e minha língua quieta, já que entrei na casa
e fui recebido com hospitalidade; mas, pela vida do seu pai e do
seu avô, e pela sua própria, se alguns outros homens do mundo
vissem essa bela criatura escondida aqui, não a deixariam com
você, eu garanto.
— Que homens são esses a quem o senhor se refere? —
perguntou Deirdre.
— Bom, eu vou lhe contar, minha jovem — disse o caçador.
— Eles são Naois, filho de Uisnech, e Allen e Arden, seus dois
irmãos.
— Como é a aparência desses homens, se por acaso os
víssemos? — indagou Deirdre.
— Ora, o aspecto e a forma desses homens são assim —
disse o caçador —: eles têm a cor do corvo nos cabelos, a pele
branca como os cisnes na água, e as bochechas são como o
sangue da novilha vermelha, e sua velocidade e seu salto são os
do salmão na torrente do rio e dos cervos na encosta cinza da
montanha. E Naois é muito maior que o resto do povo de Erin.
— Sejam eles quem forem — disse a parteira —, você sairá
daqui e tomará outro rumo. E, Rei da Luz e do Sol!, de boa fé e
com certeza, pouca é minha gratidão por você ou por ela que o
deixou entrar!
O caçador foi embora e seguiu direto para o palácio do Rei
Connachar. Ele mandou dizer ao rei que, por favor, gostaria de
lhe falar. O rei respondeu à mensagem e saiu para conversar
com o homem.
— Qual é o motivo da sua visita? — perguntou o rei ao
caçador.
— Eu só tinha que lhe dizer, ó rei — disse o caçador —, que
vi a criatura mais bela que já nasceu em Erin, e vim aqui contar
ao senhor.
— Quem é essa beldade, e onde se pode encontrá-la, já que
nunca foi vista antes senão por você, se é que de fato a viu?
— Bem, eu a vi — disse o caçador. — Mas, se a vi, nenhum
outro homem pode vê-la, a menos que receba instruções minhas
sobre o local onde ela vive.
— E você vai me guiar até onde ela vive? A recompensa
para me guiar será tão boa quanto a recompensa pela sua
mensagem — garantiu o rei.
— Bem, eu o guiarei, ó rei, embora provavelmente isso não
seja o que elas querem — respondeu o caçador.
Connachar, rei de Ulster, mandou chamar seus parentes
mais próximos e contou-lhes suas intenções. Embora cedo tenha
surgido o canto dos pássaros entre as cavernas rochosas e no
bosque, mais cedo ainda Connachar, rei de Ulster, chegou, com
sua pequena tropa de amigos queridos, durante o agradável
crepúsculo do fresco e suave mês de maio; o orvalho cobria cada
arbusto, flor e caule, quando foram arrancar Deirdre da colina
verde onde ela morava. Muitos dos jovens tinham o passo ágil,
rápido e gracioso quando começaram, mas, quando chegaram à
cabana, tinham o passo fraco, débil e vacilante por causa da
distância e da dificuldade da estrada.
— Lá embaixo, agora, no fundo do vale, fica a cabana onde
a mulher mora, mas não vou chegar mais perto do que isto da
velha — disse o caçador.
Connachar desceu com seu bando de parentes até a colina
verde onde Deirdre morava e bateu à porta da cabana. A parteira
respondeu:
— Nada menos que a ordem e o exército de um rei me
tirariam da minha cabana esta noite. E eu agradeceria muito se
você me dissesse quem quer que eu abra a minha porta.
— Sou eu, Connachar, rei de Ulster.
Quando a pobre mulher ouviu quem estava à porta, ela se
levantou depressa e deixou passar o rei e todos de seu séquito
que conseguiram entrar.
Quando o rei viu à sua frente a mulher que tinha ido
procurar, pensou que nunca vira ao longo dos dias, nem em seus
sonhos à noite, uma criatura tão bela quanto Deirdre, e deu a ela
todo o amor de seu coração. Deirdre foi carregada sobre os
ombros dos heróis, e ela e sua mãe adotiva foram levadas à
corte do Rei Connachar de Ulster.
Com o amor que sentia por ela, Connachar queria se casar
com Deirdre imediatamente, ali mesmo, para que ela não se
recusasse a se casar com ele. Mas ela lhe disse:
— Eu ficaria grata se o senhor me desse um tempo de um
ano e um dia.
— Eu lhe concederei isso — disse ele —, por mais difícil que
seja, se você me der sua palavra de honra de que se casará
comigo ao fim desse prazo de um ano.
E ela lhe deu sua palavra. Connachar conseguiu para ela
uma tutora e algumas amas alegres e recatadas, que se
deitariam e se levantariam com ela, que a entreteriam e
conversariam com ela. Deirdre era habilidosa nas tarefas das
donzelas e esposas, e Connachar achava que nunca tinha visto
com seus olhos mortais uma criatura que o agradasse mais.
Certo dia, Deirdre e suas acompanhantes estavam na colina
atrás da casa, apreciando a vista e aproveitando o calor do sol.
Então viram chegar três viajantes. Deirdre olhava para os
homens que se aproximavam, maravilhada. Quando os homens
chegaram perto delas, Deirdre lembrou-se do que o caçador
contara, e disse a si mesma que aqueles eram os três filhos de
Uisnech, e que aquele era Naois, que era uma cabeça mais alto
que todos os homens de Erin. Os três irmãos passaram sem
notá-las, sem sequer olhar para as jovens na colina. O amor por
Naois atingiu o coração de Deirdre, de modo que ela não pôde
fazer nada além de segui-lo. Ela suspendeu a barra de suas
vestes e foi atrás dos homens que passavam pelo sopé da
colina, deixando suas acompanhantes para trás. Allen e Arden
tinham ouvido falar da mulher que Connachar, rei de Ulster,
tomara para si e pensaram que, se Naois, seu irmão, a visse, ele
a tomaria para si próprio, principalmente porque ela não era
casada com o rei. Eles notaram a mulher vindo e gritaram um
para o outro para acelerarem o passo, pois tinham um longo
caminho a percorrer e o crepúsculo já estava chegando. E assim
fizeram. Deirdre gritou:
— Naois, filho de Uisnech, você vai me deixar?
— Que grito agudo e estridente é esse? O mais melodioso
que meu ouvido já escutou e, de todos que ouvi, o mais
estridente que já atingiu meu coração?
— Não é nada além do lamento dos cisnes de Connachar —
disseram seus irmãos.
— Não! É o grito angustiado de uma mulher — disse Naois,
e ele jurou que não avançaria mais até ver de quem era o grito,
então voltou.
Naois e Deirdre se encontraram, e Deirdre beijou Naois três
vezes, e deu um beijo em cada um de seus irmãos. Com a
confusão em que se encontrava, Deirdre ficou vermelha como o
fogo, e sua cor veio e desapareceu tão depressa quanto o
movimento do álamo à beira do rio. Naois pensou que nunca
tinha visto criatura mais bela e deu a Deirdre o amor que nunca
concedera a coisa, visão ou criatura alguma além dela.
Então Naois colocou Deirdre sobre seus ombros e disse aos
irmãos que mantivessem o ritmo, e eles assim o fizeram. Naois
achou que não seria bom para ele permanecer em Erin, por
conta da maneira como Connachar, rei de Ulster, filho de seu tio,
se voltaria contra ele por causa da mulher, embora o rei não
tivesse se casado com ela; então retornou a Alba, ou seja, à
Escócia. Ele chegou à margem do lago Ness e fez casa ali. De
sua porta, podia pescar o salmão na correnteza e, de sua janela,
podia caçar o cervo na encosta cinza. Naois e Deirdre, Allen e
Arden moravam em uma torre, e viveram felizes pelo tempo em
que ficaram lá.
Foi então que chegou ao fim o período que Deirdre tinha
para se casar com Connachar, rei de Ulster. Connachar decidiu
que ia buscá-la pela ponta da espada, fosse ela casada com
Naois ou não. Então ele preparou um grande e alegre banquete.
Enviou uma mensagem por toda Erin para todos os seus
parentes, convidando-os para a festa. Connachar achava que
Naois não viria, embora devesse convidá-lo, e a ideia que surgiu
em sua mente foi enviar o irmão de seu pai, Ferchar Mac Ro, a
Naois em missão diplomática. Ele fez isso; e Connachar disse a
Ferchar:
— Diga a Naois, filho de Uisnech, que estou dando um
grande e alegre banquete a meus amigos e parentes espalhados
por toda vastidão de Erin, e que não vou descansar de dia nem
dormir à noite, se ele, Allen e Arden não participarem da festa.
Ferchar Mac Ro e seus três filhos iniciaram sua jornada e
chegaram à torre onde Naois morava ao lado do lago Etive. Os
filhos de Uisnech deram as boas-vindas cordiais a Ferchar Mac
Ro e a seus três filhos e lhe pediram notícias de Erin.
— A melhor notícia que tenho para você — disse o herói
destemido — é que Connachar, rei de Ulster, está oferecendo um
grande e suntuoso banquete a seus amigos e parentes
espalhados por toda a vastidão de Erin, e ele prometeu pela terra
debaixo de seus pés, pelo céu alto sobre dele, e pelo sol que se
move para o oeste, que não descansará de dia nem dormirá à
noite, se os filhos de Uisnech, os filhos do irmão de seu próprio
pai, não voltarem para a terra de sua casa e para o solo onde
nasceram, e também para o banquete, e ele nos enviou nessa
missão para convidá-los.
— Nós iremos com você — disse Naois.
— Nós iremos — disseram seus irmãos.
Mas Deirdre não queria ir com Ferchar Mac Ro, e ela tentou
todas as orações para impedir Naois de ir com ele. Ela disse:
— Eu tive uma visão, Naois, e você vai interpretá-la para
mim.
Então ela cantou:
Ó Naois, filho de Uisnech, ouça com cuidado
O que num sonho me foi revelado.
Três pombas brancas do sul vinham
Sobre o mar cruzando o céu,
E da colmeia em seus bicos traziam
Doces e suaves gotas de mel.
Ó Naois, filho de Uisnech, ouça com cuidado
O que num sonho me foi revelado.
Três falcões cinza vinham do sul para mim
Sobrevoando o oceano,
Traziam em seus bicos gotas carmim
Que eram tudo que mais amo.
Disse Naois:
Isso não passa do medo em seu coração
E de um sonho na escuridão, Deirdre.
— O dia em que Connachar enviou o convite para sua festa
será um dia de má sorte para nós se não formos, ó Deirdre.
— Vocês irão até lá — disse Ferchar Mac Ro. — E, se
Connachar mostrar bondade para com vocês, mostrem bondade
para com ele. Se ele demonstrar ira para com vocês,
demonstrem ira para com ele, e eu e meus três filhos estaremos
com vocês.
— Nós estaremos — disse Drop Destemido.
— Nós estaremos — disse Hardy Heroico.
— Nós estaremos — disse Fiallan, o Fiel.
— Eu tenho três filhos e eles são três heróis, e em qualquer
dano ou perigo que possa lhes acontecer, eles estarão ao seu
lado, e eu mesmo estarei junto com eles. — E Ferchar Mac Ro
fez seu juramento e deu sua palavra diante de suas armas de
que, diante de qualquer dano ou perigo que surgisse para os
filhos de Uisnech, ele e seus três filhos não deixariam uma
cabeça sobre um corpo vivo em Erin, independentemente de
espada ou capacete, de lança ou escudo, de lâmina ou cota de
malha, não importava quão bons fossem.
Deirdre não queria deixar Alba, mas foi com Naois. Ela
derramou lágrimas copiosamente e cantou:
Muito querida me é a terra lá de cima,
E ao deixá-la meu coração dói.
Da Alba, de bosques, lagos e colinas,
Devo partir com Naois.
Ferchar Mac Ro não parou até que levasse consigo os filhos
de Uisnech, apesar das suspeitas de Deirdre.
O coracle foi posto ao mar,
Sobre ele a vela se içou;
E depois de dois dias a remar,
às margens de Erin chegou.
Assim que os filhos de Uisnech desembarcaram em Erin,
Ferchar Mac Ro enviou uma mensagem a Connachar, rei de
Ulster, avisando que os homens que ele queria tinham vindo e
que devia mostrar bondade a eles.
— Bem — disse Connachar —, eu não esperava que os
filhos de Uisnech viessem, embora tenha mandado chamá-los, e
não estou pronto para recebê-los. Mas há uma casa lá embaixo
onde acomodo os estrangeiros. Eu os deixarei ir para lá hoje, e
minha casa estará pronta para eles amanhã.
Mas ele, que estava lá em cima no palácio, sentiu que
demorava muito para ter notícias de como estavam as coisas lá
embaixo, na casa dos estrangeiros.
— Você, Gelban Grednach, filho do Rei de Lochlin, vá até lá
e me traga informações sobre Deirdre, se a tonalidade e a
compleição de sua pele se mantêm. Se sim, eu a tomarei, com o
fio da lâmina e a ponta da espada. Se não, deixarei que Naois,
filho de Uisnech, fique com ela para si — disse Connachar.
Gelban, o alegre e encantador filho do Rei de Lochlin,
desceu à casa dos estrangeiros, onde estavam os filhos de
Uisnech e Deirdre. Ele olhou pelo buraco na porta. A mulher para
quem ele olhava era tomada por uma chama carmesim quando
alguém a fitava. Ao ver Deirdre, Naois soube que mais alguém
estava olhando para ela por trás da porta. Ele pegou um dos
dados sobre a mesa à sua frente e o atirou pelo buraco,
arrancando o olho de Gelban Grednach, o Alegre e Encantador,
que saiu pela parte de trás de sua cabeça. Gelban voltou ao
palácio do Rei Connachar.
— Você era alegre e charmoso quando saiu, mas está triste
e sem charme no regresso. O que aconteceu com você, Gelban?
Você a viu? A pele e a compleição de Deirdre são como antes?
— perguntou Connachar.
— Bem, eu vi Deirdre. Eu a vi de verdade e, enquanto a
olhava pelo buraco na porta, Naois, filho de Uisnech, acertou
meu olho com um dos dados em suas mãos. Mas, para falar a
verdade, embora ele tenha arrancado um de meus olhos, ainda
era meu desejo continuar olhando para ela com o outro olho, não
fosse pela pressa com que o senhor me mandou voltar —
respondeu Gelban.
— Isso é verdade — disse Connachar. — Que trezentos
heróis corajosos vão à casa dos estrangeiros, tragam Deirdre
aqui para mim e matem o resto.
Connachar ordenou que trezentos fortes heróis fossem à
casa dos estrangeiros, levassem Deirdre de volta com eles e
matassem o resto.
— Os homens do rei estão vindo me buscar — disse
Deirdre.
— Sim, mas eu mesmo sairei e deterei os homens do rei —
retrucou Naois.
— Não será você, mas nós que iremos — disseram Drop
Destemido, Holly Heroico e Fiallan, o Fiel. — Foi a nós que nosso
pai confiou sua defesa contra danos e perigos quando partiu para
casa.
E os jovens galantes, muito nobres, muito viris, muito
bonitos, com belos cachos castanhos, saíram com as armas
apropriadas para uma luta feroz e vestidos com armaduras
próprias para o combate violento, polidas, claras, brilhantes,
resplandecentes e cheias de lâminas, decoradas com muitas
imagens de animais, pássaros, bichos rastejantes, leões, tigres
de patas ágeis, águias-reais, gaviões devastadores e víboras
ferozes; e os jovens heróis dizimaram três terços da tropa.
Connachar saiu às pressas e gritou de raiva.
— Quem está aí no campo de batalha matando meus
homens?
— Nós, os três filhos de Ferchar Mac Ro.
— Bem — disse o rei —, darei um indulto ao seu avô, um
indulto ao seu pai e um indulto para cada um de vocês três, se
vierem para o meu lado esta noite.
— Bem, Connachar, não aceitaremos sua oferta nem
agradeceremos por ela. Preferimos, de longe, ir para casa de
nosso pai e contar a ele os atos de heroísmo que tivemos, a
aceitar qualquer coisa nesses seus termos. Naois, filho de
Uisnech, Allen e Arden são parentes seus tanto quanto nossos.
Apesar disso, você está disposto a derramar o sangue deles, e
também derramaria o nosso, Connachar. — E os jovens nobres,
viris e bonitos, com belos cachos castanhos, voltaram para
dentro. — Agora voltaremos para casa — disseram eles — e
contaremos ao nosso pai que você está a salvo das mãos do rei.
— E os jovens, muito altos, ágeis e bonitos, foram para a casa do
pai contar a ele que os filhos de Uisnech estavam a salvo. Isso
aconteceu no final do dia, durante a noite, e pelo crepúsculo da
manhã, e Naois disse que eles também deveriam ir embora, sair
daquela casa e retornar a Alba.
Naois e Deirdre, Allen e Arden começaram a voltar a Alba. O
rei ficou sabendo que o grupo que ele estava perseguindo havia
partido. Então mandou chamar o Druida Duanan Gacha, o
melhor mágico que ele tinha, e disse-lhe o seguinte:
— Muita riqueza eu gastei com você, Druida Duanan Gacha,
para lhe dar educação, aprendizado e os mistérios da magia. Vou
culpar você se essas pessoas se afastarem de mim hoje sem se
importarem, sem consideração ou respeito por mim, sem que
tenhamos chance de ultrapassá-las ou poder para detê-las.
— Bem, eu vou detê-las — disse o mágico —, até que a
companhia que você enviou para buscá-las retorne. — E o mago
colocou diante deles um bosque que homem algum poderia
atravessar, mas os filhos de Uisnech marcharam através do
bosque sem parar nem hesitar, e Deirdre segurou a mão de
Naois.
— De que adiantou isso? Ainda não foi o bastante — disse
Connachar. — Eles partiram sem muito esforço dos seus pés,
nem detiveram seus passos, sem consideração ou respeito por
mim, e não tenho poder para alcançá-los ou chance de fazê-los
voltar esta noite.
— Vou tentar outro plano com eles — disse o druida; e
colocou diante deles um mar cinzento em vez de uma planície
verde. Os três heróis tiraram suas roupas e as amarraram atrás
da cabeça, e Naois colocou Deirdre sobre seus ombros.
Eles se lançaram de lado na correnteza,
E mar e terra não tinham diferença,
O oceano cinzento e agitado
Era igual ao verde prado.
— Embora isso seja bom, ó Duanan, não fará os heróis
voltarem — disse Connachar. — Eles se foram sem consideração
por mim, e sem honra para mim, e sem que eu tenha poder para
persegui-los ou forçá-los a voltar esta noite.
— Vamos tentar outro método com eles, já que este não os
deteve — disse o druida.
E então ele congelou o agitado mar cinzento e o transformou
em picos íngremes, afiados como espadas em uma extremidade
e com o poder venenoso das víboras na outra. Então, Arden
gritou que estava ficando cansado e quase desistindo.
— Venha aqui, Arden, e sente-se no meu ombro direito —
disse Naois.
Arden veio e sentou-se no ombro de Naois. Arden não
estava havia muito tempo nessa posição quando morreu; mas,
embora estivesse morto, Naois não o largou. Allen então gritou
que estava ficando fraco e quase desistindo. Quando Naois ouviu
seu lamento, ele soltou o suspiro penetrante da morte e pediu a
Allen que se segurasse nele, pois o levaria à terra. Não demorou
muito para que a fraqueza da morte se impusesse a Allen, e ele
soltou o irmão. Naois olhou em volta e, quando viu seus dois
amados irmãos mortos, não se importou se vivia ou morria. Ele
soltou o amargo suspiro da morte, e seu coração explodiu.
— Eles se foram — disse o Druida Duanan Gacha ao rei —,
e eu fiz o que o senhor me pediu. Os filhos de Uisnech estão
mortos e não vão mais incomodá-lo; e você tem sua esposa, sã e
salva, toda para si.
— Abençoado seja você por isso, e que os bons resultados
se acumulem para mim, Duanan. Não considero um prejuízo o
que gastei na sua educação e no seu ensino. Agora seque a
inundação e deixe-me ver se consigo contemplar Deirdre —
disse Connachar. E o Druida Duanan Gacha secou o dilúvio da
planície, e os três filhos de Uisnech estavam caídos juntos,
mortos, sem o sopro da vida, lado a lado no prado verdejante, e
Deirdre, curvando-se sobre eles, derramava lágrimas.
Então Deirdre disse este lamento:
— O leal, o amado, flor de beleza; adorado, correto e forte;
querido, nobre e modesto guerreiro. O leal, de olhos azuis,
amado por sua esposa; adorado no local do encontro, quando
tua voz soou clara através dos bosques da Irlanda. Não poderei
comer ou sorrir daqui para a frente. Não se parta hoje, meu
coração: em breve estarei no meu túmulo. Fortes são as ondas
de tristeza, porém mais forte é a tristeza em si, Connachar.
As pessoas então se reuniram em volta dos corpos dos
heróis e perguntaram a Connachar o que deveria ser feito deles.
A ordem que ele deu foi que abrissem uma cova e colocassem
os três irmãos lado a lado.
Deirdre permaneceu sentada à beira do túmulo, pedindo
constantemente aos coveiros que a fizessem mais larga. Quando
os corpos dos irmãos foram sepultados, Deirdre disse:
Naois, meu amor, venha aqui
Deixe Arden junto de Allen descansar;
Se os mortos têm algum direito de sentir,
Vocês teriam feito para Deirdre um lugar.
Os homens fizeram o que ela lhes pediu. Ela pulou no
túmulo e deitou-se ao lado de Naois, e morreu ao lado dele.
O rei ordenou que seu corpo fosse erguido da sepultura e
enterrado do outro lado do lago. Isso foi feito a mando do rei, e a
cova foi fechada. Então, um broto de abeto cresceu do túmulo de
Deirdre e outro broto de abeto cresceu do túmulo de Naois, e os
dois abetos se uniram em um nó acima do lago. O rei ordenou
que os abetos fossem cortados, e isso foi feito duas vezes, até
que, na terceira vez, a esposa com a qual o rei se casara o fez
interromper essa maldade e parar com sua vingança contra os
mortos.
Escrito por Latae Lalrondgil
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