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A Criança Trocada

Certa vez, uma mamãe troll vinha andando pela floresta, com seu filho dentro da cesta de videira que trazia nas costas. Ele era grande e feio, o cabelo espetado, dentes afiados e com uma garra no mindinho, mas a troll naturalmente acreditava que não podia haver no mundo criança mais bela. Em pouco tempo, ela chegou no local onde a floresta aos poucos se tornava mais clara. Havia ali uma estrada, acidentada e escorregadia graças às raízes das árvores, e, daquela direção, vinham cavalgando um fazendeiro e sua esposa.   Assim que a mamãe troll os avistou, ela quis se esconder na floresta para não ser vista, mas então percebeu que a esposa do fazendeiro trazia uma criança no colo, e mudou de ideia. Eu queria mesmo saber se filho de gente pode ser tão lindo quanto o meu, pensou ela, e se agachou detrás de um arbusto de aveleira que se encontrava no canto da estrada.   Mas quando eles por ali passaram, a troll, de tão curiosa, se esticou demais, a ponto de os cavalos poderem ver sua cabeça grande e sombria. Os cavalos empinaram e desembestaram adiante. O fazendeiro e sua esposa estavam por um fio de cair de suas selas. Soltaram um grito de susto, depois se inclinaram para agarrar as rédeas, e um instante depois tinham desaparecido.   A troll arreganhou os dentes de raiva, porque ela mal teve tempo de colocar os olhos no filho de gente. Mas logo em seguida ficou toda satisfeita: lá estava a criança, no chão, bem diante de seus pés.   A criança havia caído dos braços da mãe quando os cavalos se descontrolaram, e, por sorte, tinha despencado sobre um monte de folhas secas, sã e salva. A criança gritava alto do susto causado pela queda, mas, assim que a troll se curvou sobre ela, a criança ficou tão espantada e entretida que se calou e estendeu as mãos para sentir a barba preta da mamãe troll.   A troll permaneceu ali, completamente perplexa, observando a criança de gente. Ela viu os dedinhos com unhas rosadas, os olhos azuis e claros, e a boquinha vermelha. Ela sentiu o cabelo macio, passou a mão nas bochechas, e ficou mais e mais espantada. Ela não conseguia compreender exatamente como uma criança podia ser tão rosada, delicada e bela. Sem perder tempo, a troll tirou a cesta das costas, apanhou seu próprio filho, colocando-o no chão ao lado da criança de gente. E quando ela viu a diferença entre os dois, não pode se conter, e se pôs a urrar de tristeza.   Durante esse tempo, o fazendeiro e sua esposa conseguiram controlar os cavalos e voltaram para procurar o filho. A troll os escutou se aproximando, mas ela ainda não havia se cansado de admirar a criança de gente, e ficou sentada ao seu lado até os cavalos estarem quase aparecendo na estrada. Então ela tomou uma decisão repentina. Ela deixou seu próprio filho deitado no canto da estrada, e enfiou a criança de gente na cesta de videira. Pôs a cesta nas costas e correu para dentro da floresta.   Ela mal havia desaparecido quando os cavalos apareceram trazendo o casal de camponeses distintos, ricos e respeitados, que possuíam uma grande fazenda no fértil vale ao pé da montanha. Eles já estavam casados há muitos anos, mas tinham apenas um filho, então pode-se entender como estavam ansiosos para tê-lo de volta.   A esposa do fazendeiro chegou primeiro, e avistou a criança que estava deitada no canto da estrada. Esta gritava com todas as forças para chamar a mãe de volta, e a esposa já compreendia, a partir dos berros assustados, o que era aquela criança, mas ela havia passado por tal angústia pensando que o pequenino poderia ter morrido na queda que somente pensou: Graças a Deus, ele está vivo!   — O menino está aqui! – gritou ela ao homem, ao mesmo tempo que deslizou da sela e se apressou até o bebê troll.   Quando o fazendeiro chegou até eles, a esposa estava sentada no chão, sem conseguir acreditar no que via.   — Meu filho não tinha dentes afiados assim – ela disse, enquanto virava e revirava a criança. — Meu filho não tinha cabelo espetado – lamentou, com a voz expressando um pavor crescente. — Meu filho não tinha uma garra no mindinho.   O fazendeiro, concluindo que sua esposa havia enlouquecido, pulou do cavalo.   — Olha este menino, e me diz se você consegue entender por que ele está tão estranho! – disse a esposa, entregando-o ao marido. Ele o tomou nos braços, mas mal lhe lançou um olhar, cuspiu três vezes e o atirou ao chão.   — É um troll! – disse ele. — Não é nosso filho.   A esposa ficou sentada na beira da estrada. Ela não tinha uma mente ágil e não podia compreender o que havia acontecido. — Mas o que foi que fizeram com ele?   — Você não percebe que é uma criança trocada4? – perguntou o homem. — Os trolls aproveitaram quando nossos cavalos dispararam. Eles roubaram nosso filho e deixaram aqui um deles.   — Mas então onde está meu filho? – perguntou a esposa.   — Ele se foi com os trolls.   Então a esposa entendeu toda sua infelicidade. Ela empalideceu como uma moribunda, e o marido pensou que ela soltaria seu último suspiro.   — Nosso filho não pode estar tão longe – disse ele, tentando acalmá-la. — Vamos entrar na floresta e procurá-lo.   E, assim, ele amarrou as rédeas do seu cavalo em um tronco de árvore e abriu caminho entre o mato. A esposa se levantou para segui-lo, mas então ela percebeu que o bebê troll estava num lugar onde poderia ser pisoteado a qualquer instante pelos cavalos, que estavam nervosos por tê-lo em sua proximidade. Ela arrepiou só de pensar em tocar a criança trocada, mas ela o apanhou mesmo assim e o deixou fora do alcance dos cavalos.   — Aqui está a matraca que nosso menino trazia na mão quando você o perdeu – gritou o fazendeiro, de dentro da floresta. — Agora sei que estou na trilha certa.   A esposa se apressou atrás dele, e juntos andaram pela floresta, procurando, mas não encontraram nem criança e nem troll. O sol começou a se pôr, e eles tiveram que retornar aos cavalos.   A mulher chorava e contorcia as mãos. O homem andava rangendo os dentes e não disse uma palavra para consolá-la. Ele era de velha e boa família, cujo nome se apagaria caso não tivesse tido um herdeiro. E agora andava com raiva da mulher, por ela ter deixado a criança cair. Ela devia ter segurado o menino com força, não importasse o quê, pensou ele. Mas quando viu quão aflita ela estava, não teve coragem de recriminá-la.   Depois que ele já a havia ajudado a subir ao cavalo, a esposa lembrou-se da criança trocada.   — O que vamos fazer com o bebê troll? – perguntou ela.   — Onde ele foi parar? – indagou o homem.   — Está ali, debaixo do arbusto.   — Lá está bem para ele – disse o homem, rindo com amargor.   — Nós temos o direito de levá-lo conosco. Não podemos deixar ele aqui nesse lugar selvagem.   — Creio que podemos, sim – disse o fazendeiro, pondo o pé no estribo.   Ele deve ter razão, assim pensava a esposa. Não precisavam levar consigo o bebê troll. Ela deixou o cavalo dar alguns passos, mas, num instante, foi impossível cavalgar adiante.   — De todo jeito, é uma criança – disse ela. — Eu não posso deixá-lo aqui para servir de comida aos lobos. Você precisa me dar essa criança.   — Isso eu não faço mesmo – respondeu o homem. — Ele está bem onde está.   — Se você não me entregá-lo agora, sei que vou precisar voltar aqui à noite e buscá-lo – disse a esposa.   — Vejo que não foi suficiente os trolls terem roubado meu filho. Com certeza eles também arruinaram a cabeça da minha mulher – murmurou o fazendeiro. Mesmo emburrado, ele apanhou o bebê troll e o entregou a esposa, a quem ele muito amava, e cujas vontades costumava atender.   No dia seguinte, o triste ocorrido já era de conhecimento de toda vizinhança, e aqueles que eram experientes e sabidos foram correndo até a fazenda para dar conselhos e sugestões.   — Aquele que recebe em casa uma criança trocada, deve espancá-la com uma bengala bem pesada – disse uma velhinha.   — Por que é preciso ser tão cruel com ele? – perguntou a esposa. — Pode ser feio, mas nunca fez mal a ninguém.   — Bem, se alguém bater num bebê troll até o sangue escorrer, a mãe vem correndo socorrer. Entrega de volta vosso filho e leva o dela. Eu sei de muita gente que conseguiu seus filhos de volta dessa maneira.   — Sim, mas essas crianças não viveram por muito tempo – explicou outra das velhinhas, e a esposa pensou consigo mesma que não podia empregar aquele método.   Quando veio a noite, e ela ficou sozinha em casa por um instante, começou a sentir tanta falta do filho que não sabia mais o que fazer. Talvez eu devesse fazer isso mesmo, como me aconselharam, pensou; mas não conseguia lidar com a ideia.   O fazendeiro entrou na casa no mesmo instante. Ele trazia na mão uma bengala e perguntou pela criança trocada. A esposa entendeu que ele queria seguir o conselho das velhinhas sabidas e bater no bebê troll para ter o filho de volta. É até melhor que ele faça, pensou ela. Eu sou tão boba. Jamais conseguiria bater numa criança inocente. Mas tão logo o homem deu o primeiro golpe no bebê troll, a esposa entrou na frente e deteve o seu braço.   — Não, não bate nele, não bate nele! – pediu ela.   — Você não quer mesmo o seu filho de volta? – perguntou ele, tentando se livrar dela.   — Claro que quero ele de volta. Mas não desse jeito.   O fazendeiro ergueu o braço para dar um novo golpe, mas antes de fazê-lo, a esposa se jogou sobre a criança e o golpe a atingiu.   — Deus do céu! – disse o homem. — Agora eu entendo, você pretende fazer com que nosso filho fique com os trolls pelo resto da vida.   Ficou parado, esperando, mas a esposa permaneceu diante dele, protegendo a criança. Então o homem atirou a bengala ao chão e saiu da casa, enraivecido e triste. Depois, ele se perguntou por que não fez sua vontade, apesar da oposição de sua esposa; havia algo nela que o deteve. Não conseguia ficar contra ela.   Dois dias se passaram, cheios de mágoa e aflição. A falta de um filho já é difícil o bastante para uma mãe, mas o pior de tudo é ter em seu lugar uma criança trocada. É o que mantém sua saudade sempre acesa, e não a deixa nunca em paz.   — Não sei o que dar para ele comer – disse a esposa, certa manhã, ao marido. — Tudo que ponho na frente dele, ele não come.   — Não é de se estranhar – disse homem. — Você nunca ouviu dizer que os trolls só gostam de comer sapos e camundongos?   — Mas você não pode exigir que eu vá até o brejo buscar comida para ele! – exclamou a esposa.   — Claro que não vou exigir – disse o homem. — Por mim, seria melhor ele morrer de fome.   Uma semana se passou sem que a esposa conseguisse fazer com que o bebê troll comesse. Ela serviu todas as delícias que haviam em sua casa, mas o trollzinho apenas mostrava os dentes e cuspia a cada vez que ela tentava convencê-lo a provar suas iguarias. Uma noite, quando parecia que ele estava prestes a morrer de fome, o gato entrou correndo no quarto com um rato na boca. Então a mulher apanhou o rato, e o jogou para a criança trocada, e saiu rapidamente do quarto para evitar saber como o bebê troll comia.   Mas então o fazendeiro notou que sua esposa realmente tinha começado a juntar sapos e aranhas para a criança trocada, e foi tomado por tamanho desprezo por ela que não podia nem mais esconder. Era impossível dizer a ela uma palavra amistosa. Apesar de tudo, a esposa tinha ainda muito de seu antigo poder sobre o marido, e ele permaneceu em casa.   Mas isso não foi só isso. Também a criadagem passou a demonstrar insubordinação e desrespeito em relação à patroa. O fazendeiro não escondeu que estava percebendo tudo, e a esposa entendeu que, se ela continuasse a cuidar da criança trocada, teria dificuldade e pesar a cada dia que Deus lhe concedesse. Mas ela era esse tipo de pessoa; se houvesse alguém no mundo a quem todos odiavam, então era ela que juntava forças para ajudar o pobrezinho. E, por mais que sofresse por causa da criança trocada, com mais firmeza cuidava para que nenhum mal se abatesse sobre ele.   Dois anos depois, numa tarde, a esposa estava sozinha em casa, costurando pano sobre pano para fazer roupa de criança. Ah, sim!, pensou ela, enquanto costurava. Não há dia bom para aquela que tem que tomar cuidado da criança dos outros.   Ela costurava e costurava mas os buracos no pano eram tantos e tão grandes que seus olhos se encheram de lágrimas enquanto ela remendava. Mas de uma coisa eu sei, pensou ela, se fosse para remendar o pijama do meu próprio filho, não me importaria com a quantidade de buracos.   Está certo que eu tenho dificuldade com a criança trocada, continuou a esposa, quando deu por outro buraco na roupa. O melhor seria eu levá-lo para o meio da floresta, onde ele não soubesse o caminho de volta, e deixá-lo por lá.   E a verdade é que não preciso me esforçar muito para me ver livre dele, continuou ela, após um instante. Se eu apenas o deixasse fora de vista por um momento, ele então se afogaria na fonte ou se queimaria no forno, ou seria mordido pelos cachorros, ou pisado pelos cavalos. Sim, seria bem fácil me livrar dele, já que ele é tão malvado e rebelde. Não há ninguém nesta fazenda que não o odeie e, se eu não o mantivesse sempre perto de mim, logo alguém aproveitaria a oportunidade para tirá-lo do caminho   Ela se afastou um pouco e olhou a criança, que estava dormindo em um canto da casa. Ele havia crescido e se tornado ainda mais feio, mais do que da primeira vez que ela o vira. A boca crescera e virara um focinho, as sobrancelhas eram como duas escovas duras, e a pele estava completamente cinzenta.   Remendar suas roupas e cuidar de você, até que não tem problema, pensou ela. É o mínimo que tenho que suportar por você. Mas meu marido ficou magoado comigo, os empregados me desprezam, as criadas riem de mim, o gato chia quando me vê, o cachorro rosna e mostra os dentes, e você é a culpa disso tudo.   — Mas ser odiada por animais e pessoas, eu poderia suportar – exclamou ela. — O pior é que, cada vez que te vejo, sinto mais falta meu próprio filho. Ai, meu menino de ouro, onde você está? Estará dormindo sobre musgo e gravetos na toca da mamãe troll? A porta se abriu, e a esposa voltou a costurar. Era o seu marido que estava entrando. Ele parecia contente e falou com ela de um jeito mais amistoso, bem melhor do que antes.   — Hoje tem feira na igreja – disse ele. — O que você diz de nós irmos até lá?   A esposa ficou feliz com a proposta e disse que teria prazer em visitar a feira.   — Então prepare-se o mais rápido que puder! – disse o homem. — Vamos ter que ir a pé, já que os cavalos estão no campo. Mas se nós tomarmos o caminho sobre o morro, chegaremos em tempo.   Um instante depois ela estava na soleira da porta, bela e enfeitada, usando sua melhor roupa. Aquele era o momento mais alegre que ela tivera em muitos anos, e ela tinha esquecido por completo o bebê troll. Mas..., pensou ela, de repente, talvez meu marido queira somente me afastar para que os empregados possam matar a criança trocada enquanto eu estou de saída. Ela entrou rapidamente na casa e voltou com o pesado bebê troll nos braços.   — Você não pode deixar esse aí em casa? – perguntou o homem, sem raiva na voz, falando até mesmo com suavidade.   — Não, não ouso deixá-lo – respondeu ela.   — Está bem, isso é assunto seu – disse o fazendeiro —, mas vai ser pesado você carregar tal fardo sobre o morro.   Eles se puseram a caminho; uma estrada difícil, com uma subida íngreme. Precisavam atingir o alto do morro antes de alcançar a estrada que levava até a vila em que ficava a igreja. Por fim, a esposa ficou tão cansada que mal podia erguer os pés. Vez ou outra, ela tentou convencer o pequeno troll a andar por conta própria, mas ele não queria.   O homem estava todo contente, e mais amigável do que havia sido desde que eles perderam o filho.   — Você pode agora me dar a criança trocada – disse ele. — Que eu a carrego por um instante.   — Ah, não! Eu ainda consigo – disse a esposa. — Não quero te dar trabalho por causa dele.   — Você não precisa lidar com isso sozinha! – disse ele, e tomou a criança dela.   Assim que o fazendeiro segurou o menino, o caminho se mostrou mais perigoso: traiçoeiro e escorregadio, à beira de um penhasco íngreme, e tão estreito que mal havia lugar para alguém firmar o pé.   A esposa seguia atrás, e ela foi tomada pelo medo de que algo acontecesse com o homem enquanto ele andava com a criança.   — Ande devagar aqui! – gritou ela, pois pensava que ele avançava rápido demais e sem cuidado algum. Logo em seguida, ele tropeçou, e estava perto de deixar a criança cair no abismo.   Se a criança tivesse realmente caído, então nós estaríamos livres disso para sempre, pensou ela. Mas, no mesmo instante, ela compreendeu que a intenção do homem era de atirar a criança abaixo e depois fingir que não passara de um acidente. Sim, pensou ela. É isso mesmo. Ele arranjou tudo para tirar deste mundo a criança trocada, sem que eu percebesse que ele agiu de modo consciente. E, sim, seria de fato melhor se eu o deixasse fazer como quer.   Mais uma vez, o homem tropeçou numa pedra, e novamente a criança trocada estava por escorregar de seus braços. — Me dê a criança! Vai deixá-la cair – disse a esposa.   — Não – disse o homem. — Eu vou tomar cuidado.   Mal havia terminado a frase quando ele tropeçou pela terceira vez. O homem estendeu os braços para se agarrar a um galho, e a criança caiu. A esposa seguia o fazendeiro de perto e, apesar de ter acabado de reconhecer que seria bom se livrar da criança trocada, ela se jogou à frente e conseguiu agarrar uma ponta da roupa do pequeno troll, erguendo-o de volta para a estrada. Então o homem se virou para ela. O rosto dele estava agora feio e totalmente transformado.   — Você não foi tão cuidadosa quando deixou nosso filho cair na floresta – disse ele enfurecido.   A esposa nada respondeu. Ela ficou tão magoada por saber que a afabilidade do marido era fingida que se pôs a chorar.   — Por que está chorando? – perguntou ele, com voz dura. — Não teria sido uma infelicidade tão grande caso eu o tivesse deixado cair. Vamos, senão fica tarde.   — Creio não ter mais vontade de ir à feira – disse ela.   — Pois é, eu também não.   No caminho de volta, ele se perguntava por quanto tempo mais teria que aguentar aquilo. Se ele tivesse usado de sua força para arrancar a criança dela naquele instante, considerou, então tudo poderia voltar a ficar bem entre eles. Estava prestes a começar uma briga com ela por causa do troll, mas então seus olhos descansaram nos olhos pesarosos e angustiados da esposa. Ele se refreou mais uma vez, por causa dela, e tudo ficou como sempre tinha sido.   Mais dois anos se passaram e, numa noite de verão, a fazenda foi incendiada. Quando as pessoas acordaram, a casa estava tomada pela fumaça, e o ar consumido por um mar de fogo. Não havia sequer espaço para pensar em apagar as chamas ou salvar o próximo; podia-se apenas fugir para não se ver em meio às labaredas.   O fazendeiro saiu até o quintal, onde permaneceu a olhar sua casa ardendo.   — Quem me infligiu essa desgraça?   — Bem... Quem mais poderia ser a não ser a criança trocada? – disse um empregado. — Por horas a fio, ele juntou gravetos e palha, ateando fogo tanto dentro como fora da casa.   — Ontem ele fez um monte com galhos secos no sótão – disse uma criada —, e estava prestes a botar fogo quando eu o surpreendi.   — Então ele deve ter deixado para acender tarde da noite – disse o empregado. — O senhor pode ter certeza que é a ele a quem se deve agradecer essa desgraça.   — Se ele também queimasse – disse o fazendeiro —, eu não lamentaria minha velha casa desaparecendo nas chamas. E assim que ele disse isso, a esposa saiu da casa, puxando a criança pelo braço. O fazendeiro disparou em direção a ela, arrancou a criança trocada do seu colo, ergueu o menino e o atirou de volta, para as chamas.   O fogo então se alastrou pelo teto e pelas janelas; o calor era terrível.   Por um instante, a esposa cravou os olhos no homem, pálida de terror. Depois, ela se virou e correu para dentro da casa, em busca da criança.   — Você também pode queimar junto! – gritou o homem atrás dela. Ela retornou mesmo assim, trazendo a criança trocada consigo. Ela havia sofrido severas queimaduras nas mãos, e seu cabelo estava encharcado de suor. Quando ela saiu, ninguém lhe dirigiu a palavra. Ela foi até o poço, apagou algumas faíscas que ardiam na barra da saia, e depois se sentou com as costas apoiadas na pedra. O pequeno troll deitou sobre os joelhos dela e logo adormeceu, mas ela permaneceu sentada, ereta e acordada, com olhos fixos na tristeza à sua frente. Muitas pessoas passavam apressadas em direção à casa em chamas, mas ninguém falava com ela. Todos a julgavam tão horrível e assustadora que não ousavam se aproximar.   Ao raiar do dia, quando a casa estava reduzida a cinzas, o homem veio até ela.   — Eu não suporto mais – disse ele. — Você sabe bem que não quero te deixar, mas não aguento mais viver com um troll. Vou seguir meu caminho, e nunca mais voltar.   Quando a esposa escutou essas palavras e viu como o homem se virou para ir embora, ela sentiu como se algo se agitasse e a rasgasse por dentro. Ela queria correr atrás dele, mas o pequeno troll jazia pesado sobre seu colo. Ela sentiu que não tinha forças para tirá-lo de cima de si, e permaneceu sentada.   O fazendeiro se foi para a floresta, e pensou consigo mesmo que fazia aquele caminho pela última vez. Mas tão logo ele atingiu o despenhadeiro, um garoto veio correndo em sua direção. Ele era belo e esguio como uma arvorezinha. O cabelo era macio de seda, e os olhos luziam feito aço.   — Ó, assim meu filho se pareceria, se eu o tivesse comigo! – disse o fazendeiro. — Eis o herdeiro que eu teria. Seria algo diferente da criatura sombria que minha esposa arrastou até a nossa casa… Bom dia! – saudou o fazendeiro. — Qual o seu caminho?   — Bom dia também! – disse a criança. — Se adivinhar quem sou, vai saber para onde vou. Mas, quando o fazendeiro escutou a voz do menino, ele empalideceu por completo.   — Você fala como a gente da minha família costuma falar – disse ele. — E, se meu filho não estivesse com os trolls, diria mesmo que é você.   — Sim, adivinhou certo, meu pai – disse o menino rindo. — E já que adivinhou certo, saiba que estou a caminho da minha mãe.   — Você não deve ir até a sua mãe – disse o fazendeiro. — Ela não quer saber nem de você e nem de mim. No coração dela só há lugar para um troll grandalhão e sombrio.   — É verdade, pai? – perguntou o menino, olhando profundamente nos olhos do pai. — Então talvez seja melhor eu permanecer com o senhor, a princípio.   O fazendeiro sentiu tamanha alegria em encontrar o garoto que as lágrimas começaram a brotar.   — Sim, fique só comigo! – disse ele, tomando o menino nos braços e o erguendo ao vento. Ele tinha tanto medo de perdê-lo novamente que seguiu adiante com a criança no colo.   Quando já havia dado alguns passos, o menino se pôs a falar com ele.   — Que bom que o senhor não me carrega tão mal como fazia com a criança trocada – disse ele.   — O que quer dizer? – perguntou o fazendeiro.   — É que a mamãe troll andava do outro lado do penhasco comigo nos braços, e a cada vez que o senhor tropeçava e estava por perder o bebê troll, ela também estava a ponto de me deixar cair.   — O que você diz? Vocês andavam do outro lado do penhasco? – perguntou o fazendeiro, pensativo.   — Eu nunca tive tanto medo – disse o menino. — Quando o senhor atirou o bebê troll no abismo, a mamãe troll queria me jogar também. Se minha mãe não tivesse...   O fazendeiro se pôs a andar mais devagar, fazendo suas perguntas ao menino.   — Você deve me dizer como foi morar com os trolls.   — Era difícil, às vezes – disse o pequeno. — Mas, quando minha mãe era bondosa com o bebê troll, então a mamãe troll também era bondosa comigo.   — Ela batia em você? – perguntou o fazendeiro. — Ela não batia mais em mim do que o senhor batia no filho dela.   — O que te davam de comida? – perguntou o pai em seguida.   — Cada vez que minha mãe dava sapos e camundongos para o bebê troll, eu ganhava pão com manteiga. Mas quando o senhor punha pão e carne na frente do bebê troll, a mamãe troll me oferecia cobras e ratos. Nas primeiras semanas cheguei perto de morrer de fome. Mas se minha mãe não tivesse...   Quando o menino disse isso, o fazendeiro deu a volta e desceu em direção ao vale.   — Não sei por quê – disse ele —, mas me parece que você está com cheiro de fumaça.   — Sim, não é de se estranhar – disse a criança. — Eu fui atirado ao fogo na noite passada, quando o senhor atirou o pequeno troll na casa em chamas. Se minha mãe não tivesse...   O fazendeiro estava com tanta pressa que praticamente corria. Mas, de repente, ele parou.   — Agora você vai me dizer: por que os trolls lhe puseram em liberdade? – perguntou ele.   — Porque minha mãe sacrificou algo que lhe era mais valioso que a própria vida, e assim os trolls não tinham mais nenhum poder sobre mim, e me deixaram ir – disse o garoto.   — Ela sacrificou algo que lhe era mais valioso que a própria vida? – perguntou o fazendeiro.   — Sim, ela fez isso quando o deixou ir, para que pudesse manter o pequeno troll – disse a criança.   A esposa estava ainda sentada no mesmo lugar junto ao poço. Ela não dormira, e se sentia dura feito uma rocha. Não tinha forças para se mexer, e o que acontecia ao seu redor era-lhe indiferente, como se estivesse mesmo morta. Quando escutou, ao longe, a voz de seu marido gritando seu nome, seu coração voltou a bater. A vida retornou a ela. Abriu os olhos, procurando ao redor, embriagada de sono. Era um dia claro – o sol brilhava, as cotovias cantavam, e parecia impossível seguir triste naquele belo dia. Mas ela logo viu as vigas em carvão, espalhadas à volta, e um tanto de pessoas com as mãos pretas e rostos enraivecidos. Ela soube, então, que despertara para uma vida ainda mais pesarosa do que a antiga; de todo modo, conservava consigo o sentimento de que seu sofrimento tinha chegado ao fim. Procurou com os olhos a criança trocada. Ele não estava mais deitado em seus joelhos, e não se encontrava nas proximidades. Se tudo fosse como antes, ela teria corrido à procura dele, mas sentiu que, de algum modo, aquilo era desnecessário. Ela escutou de novo os gritos do marido vindos da floresta. Ele se aproximava por um caminho estreito, descendo até o quintal, e todos os vizinhos que ajudaram no incêndio correram ao seu encontro, e cercaram-no de modo que a esposa não conseguia vê-lo. Ela apenas escutava como ele, uma vez atrás da outra, gritava seu nome, chamando-a para ele, bem como aos demais. E a voz trazia uma mensagem de grande alegria, mas, mesmo assim, a esposa permaneceu parada. Ela não ousava se mexer. Por fim, todos fizeram um círculo ao redor dela, e o homem veio à frente e pôs uma bela criança em seus braços.   — Aqui está nosso filho. Ele voltou para nós – disse o homem. — E foi você, e mais ninguém, que o salvou.

Escrito por Bagi Dashrim


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