Heróis do apocalipse by Ginatsu | World Anvil Manuscripts | World Anvil

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Ginatsu
Felipe Tiago Campos

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Resbaad

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Resbaad

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Zill Daogg era um kobold, um homem-lagarto, como muitos de sua espécie, tinha a pele escamosa em um misto de tons claros de verde e azul, era de um pensamento simples, vivia para servir à Ecrorer, a Deusa do fogo e da guerra, cada ação sua era feita pensando unicamente em seguir os ensinamentos da ordem dos clérigos de Ecrorer.

Ele endireitou a pesada armadura de ferro sobre o colar de quartzo e observou uma última vez o nascer do sol no topo do Monte Murba, onde ficava um dos muitos templos de sua deusa, aquele seria seu último dia ali. O templo, antes abandonado, havia sido restaurado, todas suas janelas fechadas, afim de evitar que os espíritos inimigos escapassem de seu eterno julgamento, e todos os preciosos quartzos de guerra haviam sido devidamente enterrados, para evitar que mercenários ou hereges os profanassem

Zill Daogg contemplou os primeiros raios de sol iluminando a paisagem diante de seus olhos, começando por Vervya, a maior floresta do Estado de Meikim, com quilômetros de extensão para o norte, com sua fauna e flora desconhecidas, famosa por engolir viajantes e caravanas para todo sempre. Em seguida, observou os mais dedicados lenhadores e mineradores de Resbaad levantarem em direção à mais um dia de trabalho árduo na cidade, na mesma proporção em que dezenas de pessoas saíam cambaleando da taverna “O fosso dos sonhos” em direção a suas casas ou até um beco próximo. Por fim, um filete de luz que o forçou a fechar seus olhos o lembrou do Lago Púrpura, uma gigantesca massa de água doce de cor arroxeada que se desdobrava por quase todo o Estado, usada pela cidade para transporte de suas mercadorias e para pesca.

O templo de Ecrorer no Monte Murba ficava em cima de um desfiladeiro sob a cidade de Resbaad, descendo a montanha, havia um pequeno bosque. Antes de ir embora de vez, Zill deu uma última olhada para o local, uma espécie de igreja desabada e abandonada há décadas, mas para um clérigo de Ecrorer como ele, parecia majestoso.

Quando se virou em direção à floresta, deu de cara com criança assustada. O garoto, ou garota, tinha o cabelo escuro e curto, suas roupas eram simples trapos de couro já surrados e gastos, a criança o observou com olhos preocupados, como os de um animal que encontra um caçador, e esperou por uma reação.

Zill abaixou suas armas, um escudo e uma maça, e levantou as mãos em sinal de paz. Nesse instante, a terra ao redor deles tremeu, nada preocupante, mas foi o suficiente para fazer o jovem se assustar com o movimento repentino e correr até uma árvore próxima se escondendo atrás dela.

O kobold conseguiu perceber que a criança usava um cordão com um quartzo forjado no símbolo de Ecrorer. Talvez tivesse sido enviada pela deusa como uma provação, de qualquer forma, decidiu que tentaria ajuda-la.

Zill deu apenas mais um passo em sua direção, com toda calma e cuidado que seu pesado corpo e armadura permitiam, o que foi o suficiente para que a criança corresse assustada na direção oposta.

Antes que pudesse se aprofundar no bosque de árvores altas e raízes grossas, a criança bateu com a cabeça em uma estrutura de metal e caiu sentada no chão arenoso. Sem muito pestanejar, levou a mão à cabeça e observou o obstáculo que a derrubara.

Um constructo, de não mais de um metro e cinquenta, feito de um bronze cálido e com fios de cobre se amontoando nas juntas, a encarava com os seus olhos de vidro, que, por mais mortos e frios que pudessem parecer, traziam um brilho vívido e gentil, quase como um curioso olhar infantil.

O ser metálico trazia diversos objetos consigo, porém os que mais saltaram os olhos do kobold e da jovem criança foram as asas mecânicas, aparentemente rígidas demais para alçar voo e uma mochila movida a engrenagens que acompanhava o constructo conforme ele se movia.

Entenda, nessa época em consilium, esse ser não era algo muito comum de se ver, o mais recente aparato tecnológico desenvolvido havia sido a prensa manual, logo, os habitantes de Meikim nem sequer sonhavam em saber o que era um robô, fosse ele rudimentar ou não.

O nome desse constructo, era Tac, assim como o barulho feito por um relógio, ele havia sido criado por um cientista relojoeiro com o propósito de trabalhar em um grande relógio, construído no reino vizinho, por toda sua vida.

Tac e seu irmão Tic, trabalharam movimentando as engrenagens por detrás do relógio por anos a fio. Até que um certo dia, houve um acidente que resultou na destruição de Tic. Tac era inteligente, e ainda que não tivesse sido criado com emoções, como que por um toque divino, naquele momento, começou a senti-las. Não queria mais trabalhar no relógio, se sentia preso. Ele queria ser livre, e não apenas isso, queria poder levar a liberdade a quem encontrasse pelo caminho.

Ainda que não conhecesse nada do mundo, Tac saiu em uma jornada em busca de algo que nem mesmo ele sabia do que se tratava. Usou suas habilidades para construir objetos movidos a quartzos mágicos que o ajudavam em sua busca, e procurando por mais desses cristais, acabou por chegar ao topo do Monte Murba.

O constructo estendeu a mão em direção à criança e disse com uma voz mecânica e áspera:

—Tudo bem, criancinha?

A criança se assustou de novo e engatinhou até uma árvore próxima, ficando de costas para o tronco. Tac a observou, chateado pelos humanos ainda o tratarem com medo e receio.

Zill, pegou suas armas do chão e se aproximou:

—Quem são vocês e o que fazem aqui? — Sua voz soou mais rouca que o normal devido à falta de uso.

—Eu sou Tac. — Respondeu enquanto estendia a mão e se aproximava. — Olá.

Zill guardou a maça em um coldre na cintura e apertou a mão do estranho ser metálico.

—Me disseram que esse templo estava abandonado, é verdade? — Perguntou Tac inocentemente.

—Ele está abandonado para aqueles que não tem fé — O kobold não tinha certeza se o constructo queria lhe faltar com respeito ou se era apenas ignorante.

—O que é fé? — questionou o constructo, ele havia conhecido várias pessoas, mas nunca haviam lhe falado sobre fé.

—É uma boa pergunta... é o que eu vim encontrar nesse templo também. — Zill normalmente não se daria ao trabalho de se justificar, mas o constructo parecia sinceramente curioso e a criança ainda observava a conversa atentamente

—Então ele também é abandonado para você? — Cada palavra dita por Tac era formada lentamente, como se ele estivesse em dúvida sobre como falar ou estivesse aprendendo o idioma.

—Não mais. — Respondeu o Kobold, olhando para o Símbolo de Ecrorer em seu peito e em seguida para o céu. Isso mesmo, Ecrorer já havia conversado diversas vezes com eles através de presságios, ocasiões como essa, onde ele era questionado, apenas fortaleciam sua crença.

—Você... Encontrou sua fé?

—Eventualmente todos encontram. — Ele encarou o constructo com seus profundos olhos reptilianos e com expressão tão séria que conseguiu passar mesmo que por alguns instantes sua convicção ao homem de lata.

—Bom... — Tac coçou a cabeça confuso —Eu soube que têm alguns cristais por aqui.

Zill direcionou seu olhar ao constructo novamente, dessa vez analisando cada detalhe de seu corpo metálico minunciosamente. Nas asas, na mochila e até mesmo nas engrenagens principais de Tac, por todo o constructo haviam cristais de Ecrorer, Zill sentia a magia emanando deles, a questão era, seria ele um enviado da deusa, ou um herege profanando seus preciosos templos? Ás vezes nem mesmo ele compreendia as provações da deusa. Ainda assim afastou os pensamentos confusos e se prendeu à realidade palpável diante de seus olhos.

—Sim, mas eles pertencem à Ecrorer, a deusa desse templo. — respondeu enquanto apontava o local. Um segundo tremor de terra, um pouco mais forte, desequilibrou ambos por um momento e a criança ainda com medo no chão chorou de leve. Zill se voltou para tentar acalmá-la. —E com você camaradinha? tudo bem? — Sorriu o mais amigavelmente que pôde, tentando não mostrar os afiados dentes reptilianos. A criança olhou para Zill e para Tac e deu a mão para o kobold, ainda com medo.

—Você fala a minha língua? Tá tudo bem com você? — A criança encarou o kobold assustada e apertou forte sua mão. Algo nela fazia com que Zill quisesse ajudá-la, talvez fossem seus olhos negros como a noite que o acalmavam ou a inocência e honestidade que eles transmitiam.

Tac observou a cena, deu de ombros e se encaminhou para o templo de Ecrorer, logo na entrada já sentiu o cristal em seu peito reagindo às dezenas de quartzos provavelmente enterradas no chão à sua frente. Nunca havia estado em lugar com quartzos tão puros e em tanta quantidade, ele se perguntou à que tipo de criações poderia soprar vida com tal matéria prima.

—Por favor, não pegue os cristais. — Falou Zill se aproximando de mãos dadas com o jovem.

—Mas eu vim até aqui só pra isso. — Tac falou decepcionado e confuso com os valores do kobold — Se fé é algo que se encontra por aqui, isso deve ser a minha fé!

Zill olhou pensativo para o constructo de mente e palavras simples que o encarava esperando por uma resposta que ele não tinha.

Foram então interrompidos por cinco homens que chegaram correndo no topo do monte murba

Os homens estavam ofegantes, seus olhos tinham um tom amarelado e olhavam para os arredores à procura de algo. Eles todos trajavam uma roupa azulada e traziam cimitarras, aljavas e arcos presos ao corpo.

Na frente do grupo estava um homem mais alto que os demais, sua barba negra tinha pedaços de folhas e galhos dependurados, além de ter uma bandana vermelha prendendo os cabelos desgrenhados em ordem.

O Homem, que parecia ser o líder olhou rapidamente o entorno até fixar os olhos na criança junto de Zill.

—Esse aí é o meu filho. — Sua voz incomodava, era como se ele tentasse a todo momento tirar algo engasgado em sua garganta. — Oi filhão, o papai tá aqui. — Ele acenou com a mão repleta de anéis e sorriu com os dentes amarelados. A criança por sua vez, apenas apertou com toda sua força a mão escamosa de Zill Daogg

—Ele é seu pai? — Zill perguntou a criança, precisava confirmar antes de tomar uma decisão. Ela fez que não, chacoalhando a cabeça.

—Ele é assim mesmo sabe, a gente teve uma briguinha de nada e ele fugiu pra montanha. — Enquanto falava, o homem mantinha os olhos fixos na criança, desviando apenas para olhar as armas que Zill trazia. Os outros quatro homens confirmaram o discurso do barbudo. — Eu tô arrependido filhão. Vem cá.

Tac não entendeu tão bem as nuances da situação, mas percebeu que os homens eram uma ameaça para a inocente criança. O constructo abriu a mochila e tirou de dentro dela um isqueiro que pareceria normal não fosse o fato de seu interior ser feito de quartzo.

—Vão embora! — Bradou Zill apontando sua besta na direção do homem barbudo.

—Calma aí colega, olha, vamos fazer uma troca... Você não precisa dessa criança sabe. — Ele tentava se aproximar lentamente enquanto falava.

—Não tenho assuntos a tratar com vocês, saiam. Esse é o último aviso — Ele manteve a besta apontada para eles enquanto colocava um seta nela.

O homem barbudo levantou a mão direita e fez um sinal com os dedos, sem pestanejar, um dos homens puxou um arco e atirou uma flecha na direção de Zill.

O kobold abraçou a criança atrás de sí e defendeu o ataque com seu escudo de metal, espalhando os pedaços da flecha pelo chão do bosque.

A luta foi subitamente interrompida por uma gigantesca muralha de fogo que como se tivesse brotado do chão se firmou entre os homens e Zill, as chamas eram quentes demais para que qualquer ser vivo ou objeto chegasse intacto do outro lado e fogo rapidamente começou a se espalhar pelas árvores da floresta.

Tac observava do lado do templo, havia usado seu isqueiro para produzir a magia. Guardou o objeto novamente na mochila, tendo em mente que só poderia ser usado uma vez por dia.

—Escuta, a muralha de fogo não vai ficar aí por muito tempo, hein. — falou o constructo sem se preocupar muito enquanto começava a cavar o solo onde os quartzos estavam enterrados. Assim que encontrou um, deu uma rápida polida e o jogou dentro da mochila.

Zill sabia que as chamas não chegariam até o templo, havia uma distancia boa entre a floresta e as paredes de pedra.

—Garoto, se proteja no templo — Disse ele preocupado. A criança olhou receosa para ele, mas em seguida correu o mais rápido que pode na direção da grande porta de entrada da estrutura

—Ei, amigo. — Tac chamou o kobold — Não sei se é uma boa ideia, essa muralha de fogo, ela vai acabar você sabe.

—Eu vou acabar com esses caras, isso sim! — bradou o kobold se aproximando um pouco mais das chamas e encarando as sombras confusas de seus inimigos do outro lado.

Tac olhou para o clérigo inspirando as brasas como se fossem o mais puro ar dos campos e em seguida para a criança tremendo assustada dentro do templo.

—Tadinha, tá perdida ela. — Suspirou enquanto jogava mais um quartzo na mochila e se direcionava para a estrutura. —Criança! Melhor tu sair daqui! O que você ainda tá fazendo aqui? Veio buscar sua fé também foi? — Perguntou girando a cabeça.

—Minha... Mãe me mandou... Vir pra cá... —A criança fazia pausas para soluçar ou enxugar as lágrimas — Ela... Falou que a deusa do fogo ia me proteger.

—Vão embora! Saiam daqui — Gritou Zill para os homens que rondavam a muralha de chamas procurando um jeito de atravessar.

—A gente num vai embora não, rapá! A gente precisa da criança tendeu? — Respondeu o barbudo do outro lado da muralha. — E quando esse fogaréu cabá, tu tá fudido na nossa mão!

Tac procurou na sua mochila por alguma bugiganga que tivesse encontrado nos lixões onde pegava peças e encontrou um pequeno ursoruja de pelúcia, sem o olho direito e sem um braço, mas teria de servir.

Ele se agachou na frente da criança e entregou o objeto pútrido.

Ela olhou para o constructo e em seguida para o brinquedo, abraçou-o e agradeceu com um sorriso por entre as lágrimas.

Zill viu a cena de relance pelo canto do olho, mas continuava com sua atenção voltada para a muralha, estava próxima de acabar

—O que eles querem com você? — perguntou Tac, mas a criança apenas respondeu negativamente, não sabia. —Olha, se você quiser, eu posso te ajudar a sair daqui.

—Minha mãe falou que a deusa do fogo ia me proteger aqui — respondeu fazendo um sinal negativo com a cabeça.

—Então talvez ela tenha me mandado aqui pra te ajudar, afinal eu invoquei o fogo da deusa para te proteger.

Apesar de receosa, a criança estendeu a pequena e frágil mão para Tac. O constructo colocou a mochila nas costas, sorriu e ambos saíram de dentro do templo em direção ao precipício mais próximo.

Zill olhou mais uma vez para trás para checar como estavam as coisas e tomou um susto ao ver a cena, abandonando os homens ali mesmo e correndo na direção do dois.

—Por favor, largue os cristais e a criança! — Gritou o kobold em desespero, já sabendo que não conseguiria chegar antes dos dois até a beira do precipício.

O constructo chegou até a ponta do desfiladeiro ainda de mãos dadas com o jovem, ele o pegou no colo e olhou novamente para o abismo sob seus pés metálicos. Mais um passo e tudo que estaria abaixo deles seriam centenas e centenas de metros de queda livre até a cidade de Resbaad.

Tac olhou enquanto Zill corria desesperado em sua direção sem entender seu plano e contemplou a feição de surpresa no rosto do homem-lagarto quando suas asas mecânicas se ativaram.

As engrenagens da engenhoca giraram a todo vapor revelando os cristais de quartzo em seu interior e emitindo um irritante som de ferro contra ferro conforme a estrutura acoplada às costas do constructo parecia aumentar de tamanho.

—Me procure quando encontrar sua fé. —Foram as últimas palavras de Tac para Zill antes que ele se atirasse em direção ao abismo com o jovem em seus braços.

Quando o clérigo de Ecrorer chegou à beira do desfiladeiro tudo que conseguiu enxergar foi o constructo deslizando pelo céu como um pássaro em direção ao centro de resbaad.

Zill pensou em atirar em Tac para conseguir os cristais de volta, mas não podia colocar a criança em risco. Não havia nada que ele pudesse fazer.

Um barulho chamou sua atenção, ele se virou rapidamente e percebeu que a muralha de fogo havia acabado, os homens pisavam no chão onde ela estivera, conferindo se o feitiço tinha mesmo terminado.

O kobold viu que precisaria lutar, os homens já saíam da floresta em chamas e caminhavam em sua direção, quatro deles brandindo arcos e flechas. Zill levou a mão até o peito e sentindo o quartzo de Ecrorer incrustado em seu peito sob a pesada armadura, fechou os olhos pedindo à deusa por auxílio.

Quando os abriu, viu dezenas de espectros avermelhados saindo de dentro do templo e o rodeando. Eram espíritos de guerreiros, clérigos e paladinos que haviam lutado por Ecrorer e jurado servi-la mesmo após suas mortes. Um fim digno, pensou o kobold e agradeceu as almas que se preparam para lutar ao seu lado.

O homem barbudo sorriu sarcasticamente para o clérigo, fez um sinal com a mão e todos os outros quatro homens atiraram flechas em sua direção.

Ele rebateu a primeira com um giro da maça e ela caiu no chão ao lado da segunda, a terceira o atingiu no ombro e antes que pudesse desviar da quarta, um novo tremor o derrubou no chão fazendo com que a seta o acertasse em cheio.

Os tremores estavam ficando cada vez mais fortes. De cima da cidade onde estava voando com a criança, Tac conseguia ter um panorama melhor da dimensão do tremor. A água do lago púrpura se agitava e os marinheiros corriam para ajeitar os barcos sob a plataforma flutuante onde as embarcações ancoravam. Os pássaros voavam para longe da floresta de Vervya, em direção ao deserto, algo que nunca teriam feito em circunstâncias normais, e o monte murba, bom, não parecia estar lidando muito bem com os tremores, como todos de resbaad viriam a descobrir em alguns minutos, estava prestes a despencar

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